Ainda que não tenha sido o primeiro
artista a fazer isso - Madonna já havia proibido celulares na turnê “Madame X”
em 2020 -, o Ghost causou um certo burburinho no meio do rock quando decidiu que
em seus concertos da atual turnê “Skeletá” não seria permitido o uso de
celulares. Proibir os aparelhos que viraram extensão do corpo da maioria das
pessoas, especialmente dos mais jovens, era uma medida no mínimo controversa.
Mas também ajudou a provocar uma certa sensação de viagem no tempo. Um retorno
de uns 25 anos, quando não existiam smartphones com câmeras potentes e os grandes protagonistas dos
shows eram os isqueiros, sempre acesos nos momentos das baladas.
Munido de muita curiosidade, o “Rock on
Board” foi conferir o novo show do Ghost, em Lisboa, nesta terça-feira, dia 29
de abril. O resultado foi como entrar numa máquina do tempo. Especialmente se
você viveu na era antes dos smartphones. De repente, não havia braços
constantemente levantados para gravar algo. Não havia ninguém fazendo fotos ou
vídeos de si mesmo enquanto a banda tocava. E até os isqueiros apareceram aqui
ou ali em alguns momentos na MEO Arena, casa de shows que abrigou o espetáculo
e poderia ser comparada em tamanho à Jeunesse Arena, no Rio de Janeiro.
A ausência dos celulares e seus efeitos
Um dos elementos que mais chamou a atenção
durante o show é o mais óbvio de todos, mas que talvez nunca paremos para
pensar, pois já estamos acostumados com a realidade moderna. Trata-se da
poluição visual causada pelo brilho dos celulares. Sem ninguém gravando ou
tirando foto, a única iluminação vem do palco. O resto é só escuridão. Foi como
estar numa sala de cinema em que você consegue ver com precisão a iluminação
que foi pensada para aquele espetáculo. E parece que assim vemos o show melhor.
Em mais detalhes. Em sua riqueza de cores e cenários. E o novo show do Ghost é
um prato cheio para observar os detalhes. Seja pelo cenário, seja pela
performance da banda.
Em entrevistas para veículos estrangeiros
antes da turnê, Tobias Forge, o cantor por trás do personagem Papa V Perpétua,
defendeu a decisão de proibir os celulares nos shows com a ideia de que ele
queria criar uma experiência única como as que ele viveu quando ia a concertos
na juventude. A ideia era o de criar memórias que ficam na cabeça e no coração
e que não se perdem. Forge entende que isso se perdeu com a chegada dos
celulares aos shows. Com 44 anos, Forge é de uma geração que guardou shows na
memória e não num HD. O cantor também já disse que quer que as pessoas prestem
atenção não necessariamente nele, mas na banda. Não por acaso, em diversos
momentos do show ele pede aplausos para os integrantes do Ghost que estão se
destacando num instante específico.
É difícil dizer se é melhor ou pior curtir
um show com ou sem celulares. É uma questão mais de gosto do que uma ciência
exata. O mundo mudou e as novas gerações cresceram gravando seus momentos
favoritos nos shows e é assim que elas vivem intensamente a experiência delas. Quem
cresceu com redes sociais costuma entender que se você não registra é como se
não tivesse acontecido. Hoje, a plateia é parte do espetáculo. Contudo, de certa forma, a plateia sempre fez parte do espetáculo – basta lembrar
a emblemática participação do público em “Love of my life”, do Queen, no Rock
in Rio de 1985. O elemento novo é o gadget que gera tanto amor e ódio.
Fãs reconhecem que aproveitaram mais
Partindo de uma observação durante o show,
ficou a sensação de que o público curtiu mais a apresentação do Ghost quando
ficou desobrigado do compromisso de registrar o momento. E essa impressão
pareceu ainda mais forte quando o telão focou no público na frente do palco
durante “Square Hammer”, o apoteótico encerramento do concerto. Forge pareceu
ter aquilo planejado. Ele se posta diante do público e mostra para todos na Arena os rostos felizes na frente do palco. Rostos felizes e mãos livres aplaudindo
ou fazendo os tradicionais chifrinhos do heavy metal. A postura altiva do
cantor é a de quem poderia muito bem estar pensando: “Eu não disse para vocês
que seria legal?”
Para a publicitária e motorista de pesados
internacional Daiane Bianca Pinto, de 44 anos, não teve como negar que em
alguns aspectos Forge está certo. Ela nunca havia estado num concerto sem poder
usar o seu celular. Daiane conta que no início teve um sentimento de estranheza
e não gostou de ter o aparelho “preso dentro de uma bolsinha”. Os fãs que foram
ao show podiam ficar com seus aparelhos, mas eles eram lacrados numa bolsa
Yondr e só podiam ser retirados por um funcionário quando se deixava a Arena ou
quando o fã se dirigia para uma espécie de cercadinho do lado de fora da área
do show, que era o único momento em que era permitido o uso dos aparelhos. No entanto,
Daiane sentiu uma enorme diferença no comportamento do público sem o
celular.
- É uma diferença grotesca. Todos juntos,
cantando, curtindo, em uníssono! E não todo mundo com os braços para cima
filmando e fotografando o tempo todo. Quando estamos sempre com o celular a
filmar e fotografar, acabamos por ver e absorver menos detalhes, perdemos o foco
total do espetáculo à nossa frente – disse Daiane.
O sentimento foi compartilhado pela
consultora de imagem Bruna Melzer.
- Eu tenho quase 40 anos. Então, quando
comecei a ir em shows não tinha essa de celulares. Por isso que, para mim, foi
até um sentimento de nostalgia, estar 100% presente, como uma imersão mesmo. Antes
do show parece que há algo faltando, chega a ser engraçado ver as pessoas
interagindo sem os celulares, mas quando as luzes diminuem e o concerto começa,
o que importa é sentir aquele momento e aproveitar ao máximo! Com certeza, me
senti mais conectada com o público e com a banda, absorvendo cada instantinho
do show porque sabia que não podia revisitar esse momento, só na memória
mesmo.
Já o guia turístico Rui Souza, de 23 anos,
elogiou a iniciativa do Ghost e disse que era visível a maior conexão do público
com a banda.
- Foi ótimo poder ver o palco sem uma
floresta de ecrãs (telas) à minha frente. Senti que aproveitei o concerto de
forma muito mais genuína, sem distrações – disse Rui. – Notei uma diferença
enorme em relação a outros concertos. As pessoas estavam realmente presentes,
mais envolvidas com a música e com o ambiente. Foi tudo mais intenso e autêntico - completou.
Momentos únicos sem registro
Pode até ser uma falsa impressão, mas
depois de tantos anos acompanhando shows com o público gravando trechos de
músicas com seus celulares, conforme o Ghost fazia a sua apresentação, ficava a
sensação de que o público estava mais solto. Era possível ver casais dançando
em “Dance Macabre”, levantando seus copos de cerveja nos mais diferentes momentos
do espetáculo enquanto vibravam com alguma canção e cantando junto músicas como
“Darkness at the heart of my love”, “Kiss the Go-Goat” ou “Lachryma” e “Satanized”,
que mostraram que o novo álbum foi muito bem recebido pelos fãs.
O outro lado da história é que agora fica
difícil revisitar estes momentos. Especialmente para uma banda que produziu
tantos momentos de cores, luzes e pirotecnia, além da própria performance do
grupo. Forge paramentado como um Papa que vai levitando em “Call me Little
Sunshine”, a performance enérgica da banda em “Umbra”, os solos de guitarra dos
Nameless Ghouls, o peso da bateria e da guitarra em "Cirice", a simbiose entre público e banda em músicas como “Mary on a Cross”,
“The Future is a Foreign Land” e outras canções já citadas num set list que
teve 21 músicas. Tudo isso ficou só na memória de quem estava na MEO Arena.
- O momento torna-se ainda mais único uma
vez que não o podemos "eternizar" dentro da nossa galeria de fotos. Temos de guardar nas nossas memórias e no coração. Se as pessoas fossem um
pouco menos exageradas, e não ficassem o tempo inteiro filmando seria diferente.
Eu gostaria de ter tirado algumas fotos dos momentos mais emocionantes. Não
posso afirmar que não senti falta disso. Mas a liberdade de ter as "mãos
livres" e levantar os braços apenas para curtir e vibrar junto com a banda
foi uma experiência intensa e inesquecível! Superou as minhas expectativas – afirmou
Daiane.
Bruna gostou tanto da experiência que torce
para que outras bandas tomem a mesma iniciativa, pois, na sua opinião, a energia neste tipo de espetáculo é muito melhor. No entanto, ela reconhece que se tiver o celular a mão, é
difícil resistir a fazer um registro de suas bandas favoritas.
- Por mais que eu não faça tantas fotos e
filmagens, com o celular a mão fica difícil não registrar – comentou ela,
rindo.
Para Rui ficou provado que curtir o show
sem celular é melhor.
- Se já não pegava muito no celular antes,
agora ainda menos. Eu sou a favor de viver o momento. O que me irrita é mesmo o
restante do público com celular no ar.
Pelo menos entre uma parte dos fãs, a iniciativa
do Ghost gerou elogios. Para uma banda que acabou
de lançar um álbum tão influenciado pelo rock dos anos 1980, um show sem
celulares é como entrar no túnel do tempo e ter a experiência completa.
Assista o nosso review em vídeo de "Skeletá" no podcast Redação
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