Limp Bizkit: o descontrole impera no estádio Allianz Parque

@staff_images / Allianz Parque / Instagram

Faltam minutos para as 23h. Limp Bizkit liga as luzes do estádio, coberto em fumaça de tantos sinalizadores. A maioria sabe o que vai acontecer e começa novamente a canção que abriu o show (e o motivo pelo qual muitos estão aqui). Em Woodstock 99, "Break Stuff" (Quebrar Coisas) foi a canção culpada pela destruição das torres de som e tapumes, onde mais de 400 mil literalmente quebraram tudo o que viram pela frente.

​Na turnê 2025, a turma do Fred Durst te dá a dose dupla e o povo quer o bis com repetição, agora com a luz acesa, e o descontrole em São Paulo ultrapassa os limites do permitido. Fãs irresponsáveis soltam fogos de artifício e todo tipo de objetos luminosos, com faíscas e fogo. Fumaça, gritos e o estádio continua estremecendo. Festa alucinada e fora de controle.

Com a luz, vemos o Pikachu inflável, Papai Noel, Jesus Cristo e até um fã vestido de dinossauro. Por mais que o boné vermelho seja uma espécie de uniforme (culpa do clipe de "Nookie"), existe uma espécie de competição em testar quem consegue chegar ao extremo da anarquia. 

Quem vai de pista sabe: os sete shows do System of A Down no Brasil em 2025  foram a prova definitiva de que não existe revista ou controle capaz de achar os sinalizadores e todo tipo de artefatos luminosos que terminam invadindo o estádio.

​O importante é ouvir o rugido da plateia cantando palavra por palavra a letra de "Break Stuff". A canção nunca foi lançada como single, mas virou símbolo do caos anárquico-catártico que é uma apresentação ao vivo do Limp Bizkit. Você que nunca a ouviu se pergunta: o que está nessa letra que leva multidões ao redor do planeta ao estágio de autodestruição coletiva?

​"...É só um daqueles dias em que você não quer acordar

Tá tudo uma mrd, todo mundo é um lixo

Você nem sabe bem o porquê, mas quer justificar arrancar a cabeça de alguém

Sem contato humano, e se você interagir, sua vida tá com os dias contados

Sua melhor aposta é ficar longe, fdp

É só um daqueles dias...".

​A letra relata um dia de fúria e um dos motivos pelos quais o nu metal foi o sucessor do grunge. Jovens que passaram anos estudando e tentando trabalhar honestamente tiveram seus sonhos truncados. A economia e política desgastadas principalmente nos Estados Unidos levaram gerações à frustração de que o paraíso financeiro na vida real nunca acontece. 

Bagunça coletiva ou loucura generalizada?
 
Será que as mais de 28 mil pessoas presentes nos três setores com ingressos no Allianz Parque entendem a letra ou somente entram na bagunça coletiva, mosh pits, bate-cabeça e empurra-empurra repetindo imagens de vídeos de outros shows? Chegou o momento de agitar e quebrar tudo? Fazer por fazer, força bruta sem controle, motivo nem responsabilidade, ou simplesmente vamos mostrar para a banda que somos os mais loucos do planeta?

​Não existe maneira de controlar a quantidade de sinalizadores presentes no estádio. Desde a arquibancada, parece que estamos vendo uma cena de batalha em Mordor do Tolkien . A competição parece ser quem acende mais tochas dentro do estádio. Esta plateia não quer pisca-pisca do reloginho do Coldplay. Esta turma tem a sádica diversão de vibrar imitando os ancestrais das cavernas com fogo. Muitos irresponsáveis jogavam para o alto os bastões acessos. Pode ser bonito, mas precisa acabar.

​A canção continua e, até o fim, a plateia faz o show para a banda, que somente serve como som ambiente, tamanha a atividade colateral concomitante de centenas de pessoas. 

Terminar com a mesma canção que abre o show faz o evento ficar marcado eternamente na memória dos presentes. Não são todas as bandas que logram essa façanha que, para muitos, seria "encher linguiça" ou falta de repertório. Limp Bizkit coordena cada movimento do seu Carnaval viajante. "Loserville" é uma maneira de revitalizar uma marca forte. Todos os presentes vão falar para os amigos, e o mito do show absurdo, inacreditável, fora de controle e inesquecível continuará no boca a boca, e a banda terá mais e mais fãs dispostos a viver a experiência.

Mas o show não é só uma canção. Loserville foi uma maneira em que Fred Durst pensou em homenagear toda a galera fora do padrão. Os chamados perdedores — em inglês, "Losers" —, os fora da lei, os desajustados, os inconvenientes, os repetentes, os atrasados. A coletividade representada é gigante. Dentro de 100, talvez somente uma possa ser uma pessoa de negócios de sucesso. 

Mais do que um festival...
 
Loserville é mais do que um festival: é um espírito com a mensagem: "Hey, você não está sozinho, somos muitos no mesmo barco". ​A poucos meses da morte do baixista Sam Rivers, em consequência de um câncer, Limp Bizkit faz um show em sua homenagem. Imagens nos telões e o seu nome dão o tom do que será o show. No lugar do falecido, o baixista e guitarrista do Ecca Vandal está no palco para seguir com a música ao vivo.

​A cada canção do setlist, um intervalo com DJ. Cada canção  apresentada vira um  número exaustivo participativo de mais de 6 minutos, às vezes até 10 minutos de jam nu metal. Assim o DJ Lethal entra por alguns minutos entre canções para reorganizar o que está acontecendo no palco. 

A banda deixa a plateia descansar para manter o andamento ou, talvez, para que quem perdeu o tênis o calce novamente, ou quem precisa sair da roda consiga se afastar (lembrando que o Limp Bizkit foi acusado de perigoso pelas autoridades após Woodstock 99).

Por mais irresponsáveis que pareçam, existe uma camaradagem dentro da multidão. Os códigos são seguidos: caiu, te levantam; machucou, te ajudam. Cada segundo é pensado neste show do Limp Bizkit.

​John Otto mantém o show inteiro num som tribal ininterrupto de uma bateria marcada como numa banda militar. Baixo potente e um zumbido constante que serve como golpe marcador do baile coletivo. A afinação baixa serve de cama para os riffs cativantes e certeiros de Wes Borland. DJ Lethal cobre todas as pontas com seus scratches e ruídos; a cada intervalo, entra uma canção. 

Depois de "Rollin'", coloca os "Rolling, Rolling on the River" a "Proud Mary", de Creedence Clearwater Revival; tem momento para "Walk", do Pantera, que o estádio grita; tem "Red Red Wine" e algo do KC and The Sunshine Band e, claro, "Jump Around", do seu projeto House of Pain.

​Fred sabe seu papel de anfitrião e embaixador e, durante os 100 minutos de show, vai chamando cada uma das atrações do evento para que sua plateia faça a reverência. Assim, todos os que pisaram no palco de Loserville a partir das 04:30 da tarde Riff Raff, Ecca Vandal, Slay Squad, 311 e Bullet for My Valentine são ovacionados, cada um num momento diferente do setlist. 

Todos estes intervalos trazem o fôlego de volta da multidão participativa. Cantar? Claro, isso não falta em momento algum. Nem tudo se resume a cenas inspiradas em guerras do Senhor dos Anéis. Limp Bizkit consegue fazer uma enxurrada de canções virar hits e o Allianz grita as letras sem preocupações. 

​Teve momento "Behind Blue Eyes", do The Who, praticamente uma à capela acompanhada por 28 mil vozes. Fred Durst canta por cima da base do DJ Lethal. Na hora de tocar "Careless Whisper", do George Michael, pede que a plateia cante e tudo funciona às mil maravilhas. Inacreditável exercício de operador de emoções. Isso serve de preâmbulo para  "Faith", cover também do ex-Wham que  faz o estádio ficar mais louco. 

Loserville é uma festa para o povo. Assim, chamam uma fã para cantar "Full Nelson" e a voz gutural da paulista, Bia, impressiona e contagia o estádio inteiro, que não para de vibrar.

O momento mais heavy metal da noite, a inconfundível "Eat You Alive", literalmente é devoradora e seus "sorry" no meio da canção são quase deftonianos. Emocionante e visceral.

​"Boiler" deixa o Allianz Parque alucinado. Isso tocou na rádio? A culpa foi da MTV?  É o YouTube ou o streaming? Indiscutível é que Boiler caiu na boca do povo e é sucesso. 

A plateia sabe ao que veio e não quer parar um segundo. Foi a mesma reação em "My Way", "My Generation", "Re-Arranged", "Nookie" e "Take a Look Around". O Allianz berrou cada palavra, cada xingamento, cada suspiro. De fazer os professores de inglês orgulhosos pelos ensinamentos aproveitados.

​Todo Carnaval chega ao seu fim, e o Loserville é o último festival de rock do ano de 2025. A 11 dias do Réveillon, o evento  fez a Corrida de São Silvestre e os fogos da virada ao mesmo tempo numa única noite, que será lembrado por milhares de fãs que aumentarão o desejo de consumo pelo Limp Bizkit. Curiosamente, não teve venda de camisetas oficiais no estádio, mas as imagens que vão viralizar farão a régua do estádio com lava em erupção virar um mito a ser repetido em breve. Muitos acreditam a próxima epopeia paulistana seja no show do Korn em maio de 2026.
 
Loserville no Allianz Parque
 
​O 311 ao vivo no Allianz Parque parece o Red Hot Chilli Peppers que o Brasil nunca teve a chance de ver. O reggae/rock com batucada mil e espírito "yoga good vibes" poderia ser tão popular como Skank ou Jota Quest, mas, mercadologicamente, nunca investiram tanto como o Evanescence ou Incubus para ganhar fama na terra do samba e do Rock in Rios.

​No palco do Loserville, a inquietude e agilidade física dos dois vocalistas é vista com clareza nos telões, mas não chega ao apocalipse que viria assim que anoitecesse. Apresentam a versão "sem sal" da balada "Lovesong", do The Cure, e nem o maior hit, "Down", contagia a multidão, que procura sombra e água fresca nos 37 graus dentro do Allianz. A muito esperada All Mixed Up brilha pela sua ausência num setlist que passa voando e desapercebido. Se tão somente tivessem trabalhado mais o mercado brasileiro — coisa que pode ser remediada num futuro próximo, após a dedicada apresentação no Loserville.

​311, formada em Omaha, Nebraska, em 1988, é veterana na fusão de ritmos. O som do 311 é uma mistura ensolarada de rock alternativo, reggae, hip-hop e funk. Alcançaram o auge do sucesso comercial nos anos 90 com hits como "Down" e "Amber". Com décadas de estrada, eles construíram uma base de fãs extremamente fiel (conhecida como "excitable ones") e são famosos por suas turnês de verão constantes nos Estados Unidos.

​Na abertura, o Slay Squad entrou sabendo o que teria pela frente: fãs do Limp Bizkit querendo bagunça. E dá-lhe rimas, e dá-lhe "pula aqui", e vamos repetir: "SQUAD!". O grito de guerra domina os fãs que, desde cedo, estão ficando desidratados esperando Bullet For My Valentine ou Limp Bizkit. Tudo dá certo e, entre gritos e rimas, muitos "Squad" repetidos. Viraram os queridinhos do festival. Aparecem depois do show para falar com a galera da pista traseira e com as cadeiras inferiores.

​Slay Squad é um coletivo americano que é um dos principais expoentes do trap-metal. O grupo mistura a agressividade do hardcore punk com as batidas graves e rápidas do trap. Conhecidos por seus "mosh pits" intensos e letras que abordam a vida urbana e a revolta, eles representam a nova onda de bandas que eliminam totalmente as barreiras entre o hip-hop e o heavy metal. Sabem o jogo que estão fazendo e a oportunidade de ouro que estão tendo; brilham a noite toda, até no ato final, quando todos os participantes do Loserville se juntam com o Limp Bizkit para o Break Stuff final.

​Quem não soube aproveitar a visita foi o performer seguinte, Riff Raff. Sem banda, por cima de um playback qualquer, tentava mostrar a que veio. Não falou seu nome, não pediu gritos, nem pulos, nem nada — totalmente o oposto ao Slay Squad. Foi dizer seu nome só na hora da saída. O Fred Durst, num momento do setlist do Limp Bizkit lá pelas 22:30 da noite, fez o estádio aplaudir o ator e cantor, que parecia estar mais solto com o diretor do evento.

​Riff Raff, nascido Horst Christian Simco, é o rapper americano do Texas conhecido por sua estética extravagante, tatuagens coloridas e dentes de diamante. Ganhou notoriedade no início dos anos 2010 como parte do grupo Three Loco e por sua associação com a gravadora Mad Decent, de Diplo. Seu estilo mistura cloud rap com letras humorísticas e surreais, tornando-o uma figura conhecida da cultura da internet.

​Ecca Vandal entrou já na empolgação num trio: baterista sentado para o lado, teclados e guitarra com Richie Buxton, e a vocalista dançando e agitando. Mostra sua fúria jovial resumindo algo entre Willow e Hemlocke Springs, com pitadas de Avril Lavigne, algo de hardcore e muita paixão. Fãs do Turnstile vão amar a sul-africana, que sabe aproveitar cada segundo deste jogo chamado showbizz. Richie Buxton assumiu o papel de substituto do Sam Rivers nos shows do Limp Bizkit. Assim faz dupla jornada no palco do Loserville. 

Ecca Vandal é  uma força da natureza vinda da Austrália (com ascendência sul-africana e cingalesa), desafia gêneros, fundindo punk rock, hip-hop e música industrial. Sua voz poderosa e performance enérgica chamaram a atenção do mundo com seu álbum autointitulado. O single "Molly" conquista multidões por todo o planeta com uma pegada pesada e crua. No ato final, ela dançava fazendo cirandas nos tapetes do palco do Limp Bizkit.

​Celebração coletiva onde os músicos do Bullet For My Valentine filmavam a anarquia coletiva e sorriam para toda a festa final do Loserville. A banda galesa fez o último show em celebração do álbum The Poison (2005). Naquela noite, entraram um mês antes da realização do evento no lugar do Yungblud, que por problemas de saúde não poderia fazer os shows do Loserville (embora tenha declarado estar com problemas nas cordas vocais, continua fazendo entrevistas e apresentações para a TV norte-americana por causa das suas indicações aos Grammys). ​A sua apresentação provavelmente ficaria soterrada no mar de bonés vermelhos; por isso, a ótima escolha do veterano Bullet For My Valentine deve ter vendido o dobro de ingressos que o Yungblud não conseguiu mover. 

Os galeses chegaram com posse de reis e sabiam que São Paulo não defraudaria. Tocaram completo o The Poison, álbum de 2005 por muitos considerado o melhor da discografia. Na época, a banda dava a conhecer seu screamo gutural costurado por cima de um som que tinha pitadas da bateria do Anthrax e guitarras com timbres de Judas Priest e algo de Thin Lizzy.

​Bullet For My Valentin, formada em 1998, se tornou um dos maiores nomes do metalcore mundial. Com o lançamento do álbum The Poison, definiram o som de uma geração, unindo solos de guitarra técnicos inspirados no thrash metal com refrões melódicos e emocionais. São figuras carimbadas nos maiores festivais de rock do mundo e continuam evoluindo seu som para direções cada vez mais pesadas. ​The Poison catapultou o BFMV a banda inspiradora e movimentou toda uma cena. Vinte anos depois, as memórias são enormes e o estádio ruge sem parar. O Bullet soube usar cada segundo e cada centímetro do palco para deixar um "obrigado" gigante à multidão. 

Quem diria que Bullet funcionaria tão bem com os fãs do Limp Bizkit? Excelente! Tomara que voltem logo com Bring Me The Horizon, Slipknot, Sleep Token ou Bad Omens.

Loserville é o encontro de gerações, de estilos e de fãs que querem diversão em nichos cada vez mais fechados. A resposta é criar o "nicho de todo mundo agora". Que venham outros Loserville. Tomara que não sejamos vetados de ver estes eventos nos estádios. Ontem foi o limite da loucura permissível. Saldo positivo. Porém, não podemos correr riscos de esperar tragédias. O piso da arquibancada trepidava sob o inacreditável exercício coletivo de testar as estruturas de um estádio. 

Loquillo Panamá

Nômade agregador de ritmos musicais e fanático por shows. Está sempre correndo atrás de novidades para multiplicar e informar os amantes de boa música.

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