Nessa premissa de colocar artistas com catálogo de décadas no antigo Palestra Italia, na Barra Funda, já houve noites com Evanescence, Natiruts, Titãs, Alanis Morissette e no último sábado foi a vez do Lenny Kravitz apresentar sua turnê "Blue Electric Light" na capital Paulista.
Catalogar Kravitz dentro de um único gênero do rock, seja clássico, setentista retro, ou pop rock, deixando de fora toda a elegância do jazz, funk soul e blues? E as baladas? O artista completo com mais de 10 hits radiofônicos mundiais no currículo, é obrigado a escolher pinceladas dos seus últimos 5 álbuns num set com duração de duas horas.
Sem medo de errar na estreia da turnê na América Latina na noite paulistana, escolhe "Bring It On" do álbum de 2008, It Is Time For A Love Revolution, para emoldurar o que estava por começar. De forma nada tímida, ele inicia a cerimônia rock, recebendo uma resposta calorosa do público já nos primeiros segundos. O show de Lenny Kravitz pode ser definido como um bálsamo sonoro de uma banda calçada no rock, com desejos amorosos subliminares. Sim, Lenny quer fazer uma transformação na sua vida com a precisão de um cirurgião.
Um grande show para uma grande multidão?
A sensação era de estar vendo um Led Zeppelin com um vocalista negro de tranças, agitando cerca de 20 mil presentes. A presença de público no Allianz era equivalente a 3 noites de Espaço Unimed lotadas. Mas se temos um estádio com conforto para mostrar a estrutura completa, porque não tentar?. No entanto, era possível ver as cadeiras superiores cobertas com panos pretos (inutilizadas). O público ocupava apenas as cadeiras inferiores laterais e a pista. A premium estava lotada. No setor mais luxuoso e próximo do palco, tínhamos talvez umas 8 ou 10 mil pessoas com desejo infinito de filmar cada segundo de show com seus smartphones de última geração em vídeos de alta definição em 4k.
Esgotar o Allianz Parque parece ser um desejo - ou missão - de todos os artistas que pisam no Brasil para fazer shows. É como se fosse um parâmetro de qualidade ou realmente uma condenação no currículo. Quando na verdade, independente da quantidade de pessoas presentes no estádio, o mais importante é a conexão do público com o palco e a música que vem dele.
PS: Sim, eu decidi ver na arquibancada e ter a sensação dos imensos telões sugando tua alma e fazendo a comunicação do evangelizador do rock no palco com os presentes.
Ministro do rock, do blues e da sensualidade
Seguindo a paleta do álbum Blue Electric Light, roxo, azul e lilás adornam as imagens e iluminam a banda praticamente toda. Vale lembrar que é a primeira vez dessa atual banda de Lenny no Brasil. Entre eles, o estiloso baixista coreano, Hoonch 'The Wolf' Choi, com um luxoso chapéu "de designer" cobrindo todo seu rosto - um figurino à la Dave Navarro do Jane's Addiction ou Stevie Ray Vaughan.
Também estreando no Brasil, a baterista Jay Kayser, sucessora da idolatrada Cindy Blackman, imortalizada no clipe de "Are You Gonna My Way", mostra ao que veio. Os novos integrantes juntam seus talentos ao braço direito, e guitarrista da banda ao vivo do Lenny há décadas, Craig Ross.
Banda completa com apoio de teclados, coristas e metais (trombone, saxophone, flauta) em momentos blues, jazz, funk e soul, deixando as canções em longas, deliciosas e impressionantes jams. Ao vivo, no show do Lenny, você vai ouvir as versões estendidas ou com finais definitivos para aquelas músicas que você conhece das rádios com o famoso fade out no final. A segunda da noite é "Minister Of Rock 'N Roll", e inicia seu culto de amor à vida.
Por mais sensualidade em danças, movimentos ou sussurros, Lenny Kravitz sempre foi uma peça chave na transição entre gerações do hard rock com pop soul. Influência direta tanto do Led Zeppelin e The Who quanto do James Brown, Prince ou Michael Jackson. Pop rock com guitarras e uma missão de levar as multidões para lugares especiais ou paraísos imaginários.
De volta ao Brasil após cinco anos
Quem segue a carreira do cantor americano desde 1989 conhece as veredas e ambientes criados pelo guitarrista e multi-instrumentista em estúdios ao redor do mundo.
Na hora de montar um setlist fica sempre a incógnita do que vai deixar de fora. Algo muito mais doloroso quando o artista demora sete, nove ou doze anos para voltar ao Brasil em show único. A última visita do Lenny ao Brasil foi no Festival Lollapalooza de 2019, em São Paulo num curto set acelerado [o Rock On Board esteve lá e você pode ler a resenha do show AQUI].
Em "Tk421", primeira canção lançada do álbum que dá o nome à turnê "Blue Electric Light", Lenny Kravitz faz um impactante acompanhamento no baixo, quase solando junto com a banda.
Entre muitos "Boas Noites", "Te Amos" e "São Paulos", pede licença envergonhado, por não falar português, agradece o carinho e relata o amor que sente pelo Brasíl, pelo povo e sua natureza, e brincando, solta um natural "fiquei tão apaixonado por este lugar, e me sinto tão em casa que virei "fazendeiro" - a plateia reage em gargalhadas, aplausos e gritos.
O músico faz uma reverência, aponta para o céu e agradece o Criador.
Assim começa o segundo ato da apresentação com "I'm a Believer" do álbum Strut de 2014, um rock anos 50 que poderia ser da Suzy Quatro, Little Richards ou Joan Jett - com direito a "Yeah, Yeah!".
Poderia ter mais disco novo...
No show desta noite, somente "Paralized", "TK421", e "Human" são do seu último álbum [leia a resenha do álbum AQUI]. Muitos gostariam de ouvir a releitura de "Bundle of Joy", que é uma parceria com os falecidos Tony Lemanz e Prince, ou então as delicadas "Honey", "Spirit In My Heart" e a faixa-título. Canções que transmitem sensações que transcendem a alma e levantam a libido. Podendo assim, não fazer parte do roteiro de um show em estádio.
Não poderia ter trocado as faixas do álbum Strut por novas canções do Blue Electric Light? Ou incluir as novas baladas e deixar fora do set "It Ain't Over 'till Its Over", "Again", "Believe" e "I Belong To You", mexendo assim, em algo praticamente sagrado que poderia, como sempre, deixar saudades na hora de relembrar uma noite perfeita.
A plateia não vibra tanto com "Human", mas abraça "Low" com tanta paixão e cantoria que chama muito atenção. Ao finalizar, Lenny agradece e comenta que essa é uma parceria com o magnífico Michael Jackson (faixa do Álbum Raise Vibration de 2018).
Não aconteceu a mesma receptividade com o hard rock pesadão de "Paralized" do último álbum, nem com "The Chamber" do álbum Strut . Por outro lado, os artistas sempre querem resgatar seus pequenos diamantes, e assim, "FEAR" do primeiro álbum, é apresentada como "vamos voltar para o começo, lá em 1989".
Desfile de hits no encerramento
Depois de tantos "diamantes" trazidos, chega o momento do baile de sucessos. Faltando apenas 30 minutos para acabar os show, a plateia sabe a avalanche de hits que está por começar. "It Ain't Over till Its Over", "Again", single inédito do seu álbum de "Grandes Sucessos" lançado em 2000, que tem a letra inteira berrada pelo público - provavelmente tocou inúmeras vezes em algumas cenas românticas de casais apaixonados em novelas que eram assistidas diariamente por mais de 50 milhões de pessoas no Brasil.
Sem medo de interromper o clima de lua-de-mel causado pelas baladas românticas, chega o momento de fazer o estádio sentir a banda de rock que muitos nem sabem que foram ver. Enfileiradas, "Always On The Run", o cover do The Guess Who, "American Woman" (que no Brasil virou canção do Kravitz), "Fly Away" - e seus "Yeah Yeah Yeah - e o arremate final com "Are You Gonna My Way". Do palco no estádio parece que saem raios em direção à plateia. Uma verdadeira tormenta elétrica vibratória de sucessos.
Plateia nas nuvens e público ainda absorvendo a sensação alucinante que acabou de presenciar. O palco fica às escuras e somente uns 4 ou 5 minutos depois, aparece Lenny com seu violão para o bis com "Let Love Rule". São mais de 9 minutos de bênçãos e agradecimentos, até que o artista desce novamente para abraçar e cantar com a galera da grade. Lenny sabe a posição que ocupa e que sem o público não existem artistas como ele.
Por mais armaduras que possam usar para esconder ou criar um personagem, não há cock rings, calças de couro, peitorais ou óculos escuros que consigam esconder a sua gratidão.
Presenças ilustres na plateia
Na foto acima, Corey Glover, vocalista do Living Colour, Paul Pesco, guitarrista norte-americano conhecido mundialmente por ter participado da turnê de estreia da Madonna, o baterista Omar Hakim (baterista de lendas como David Bowie, Miles Davis, Dire Straits, Sting), e o fotógrafo Marcos Hermes. Os artistas participaram de um evento promovido por Kiko Zambianchi na última quinta-feira e aproveitaram para curtir o show de Lenny Kravitz no meio da galera. Foto cedida gentilmente por Marcos Hermes, que fez essa selfie sensacional com seu celular.