A arte tem muitas funções. Entre elas está
o fato de ser um canal para um artista exorcizar os seus demônios internos.
Para Robert Smith, cantor e compositor do The Cure, Songs of a Lost World é parte de um processo de superação de uma dor. Marcado pelas perdas
recentes do cantor, em especial o irmão mais velho Richard, o novo álbum da
banda, o primeiro desde o lançamento de 4:13 Dream (2008) há 16 anos, é
marcado pelo luto, pela melancolia e por um magistral e rico caleidoscópio
musical que torna este disco um dos mais bonitos lançados pelo grupo inglês.
No entanto, Songs of a Lost World tem um
porém. Não é um álbum que vai agradar aos fãs dos hits clássicos e
moderadamente alegres – porque é impossível ser 100% feliz na cultura do rock
gótico em que o The Cure perfeitamente se insere – como “Friday I´m in love” ou
“In Between Days”.
Pelo contrário. Robert Smith faz questão
que o seu álbum tenha o tempo que precisa ter, os arranjos que precisam ter e
que a sua voz só apareça quando ele achar que deve aparecer. Não é por acaso que
as canções do disco são longas, sempre acima de quatro minutos, e que ele começa
a cantar na faixa de abertura, a soturna “Alone”, só aos 3:22, quase na metade
da faixa. Em “Endsong”, que fecha o disco, Smith só começa a cantar aos 6:24,
depois de um longo e labiríntico momento instrumental em uma faixa que tem 10:23 de duração.
“Alone” dá de cara o tom melancólico do
álbum: “This is the end/Of every song that we sing/The fire burned out to
ash/And the stars/Grown dim with tears” (Este é o fim/De cada música que
cantamos/O fogo se apagou em cinzas/E as estrelas/Se escurecem com lágrimas”. A
canção segue com um teclado quase etéreo enquanto Smith declama a letra com
a sua voz grave, que será uma tônica em praticamente todo o álbum.
Smith está cantando lindamente em todo o
disco e é quase possível sentir o seu luto em faixas como "All I ever Am" e “And nothing is Forever”, marcada pela guitarra na abertura e os teclados de Roger O ´Donnell. Nesta
música, Smith fala sobre a mortalidade e reflete sobre a finitude da vida.
É natural que depois de ter passado pela
perda dos pais e do irmão ao longo dos últimos anos, Smith reflita mais sobre o
fim. Quando se é jovem e vivendo na cultura gótica, é quase cool falar e cantar
sobre a morte. Especialmente porque ela é relativamente distante de você. É
quando a morte começa a atingir as pessoas que amamos do nosso entorno que o diálogo
sobre ela ganha outros contornos e as reflexões ficam mais sérias. E parece ser
isso o que diferencia o The Cure e, mais particularmente, o Robert Smith dos anos
1980 para o artista de Songs of a Lost World. Principalmente porque além das
perdas de Smith, a própria banda enfrenta um problema de saúde grave, o câncer
de O´Donnell, diagnosticado em 2023, mas só revelado para o
público em setembro deste ano.
Esse diálogo com o luto atinge o seu auge em “I can never say goodbye”. Esta pode não ser a melhor faixa do
álbum, ainda que tenha um solo de guitarra tão sufocante quanto deslumbrante,
mas é uma canção muito importante para o processo de superação do luto de Smith por ser explicitamente sobre o seu irmão: “I can´t wake this dreamless
sleep however I hard to try/I´m down on my knees, empty inside/From out the cruel
and treacherous night/Something wicked this way comes/To steal away my
brother´s life” (“Não consigo acordar desse sono sem sonhos, por mais que eu
tente/Estou de joelhos, vazio por dentro/Algo maligno vem por ai/Da noite cruel
e traiçoeira/Para roubar a vida do meu irmão”).
O tom melancólico do álbum só é quebrado
parcialmente em dois momentos. Em “A fragile thing”, canção marcada pelo
trabalho de bateria e percussão de Jason Cooper e pelo solo de guitarra de Reeves
Gabrels, ainda que o tema da música gire em torno da solidão e desolação.
Já “Drone: Nodrone” é de longe a canção
mais alegre do álbum. Ela destoa ao mesmo tempo em que provoca uma quebra na
taciturnidade do disco exatamente quando ele está chegando na metade. Se fosse
um álbum lançado como um LP do passado, possivelmente “Drone: Nodrone” abriria
um potencial lado B.
Songs
of a Lost World mostra que pode haver muita beleza na melancolia e nas
reflexões sobre a finitude da vida. É impossível não traçar algum paralelo
entre o novo álbum do The Cure e Blackstar (2016), o derradeiro trabalho
de David Bowie. No caso de Bowie, evidentemente, o cantor estava refletindo
sobre a própria finitude. Tanto que ele faleceu no dia 10 de janeiro daquele
ano de 2016 decorrente de um câncer no fígado, dois dias após o lançamento do
disco. No caso do The Cure, esperamos que a linha de chegada da longa jornada
da vida da banda e de seus integrantes ainda esteja distante e que ainda
possamos apreciar ainda muitos excelentes momentos como o de Songs of a Lost World.