Baseado na melancolia, The Cure lança um dos álbuns mais bonitos da carreira

The Cure
Songs Of A Lost World
⭐⭐5/5
Por  Marcelo Alves 
 
A arte tem muitas funções. Entre elas está o fato de ser um canal para um artista exorcizar os seus demônios internos. Para Robert Smith, cantor e compositor do The Cure, Songs of a Lost World é parte de um processo de superação de uma dor. Marcado pelas perdas recentes do cantor, em especial o irmão mais velho Richard, o novo álbum da banda, o primeiro desde o lançamento de 4:13 Dream (2008) há 16 anos, é marcado pelo luto, pela melancolia e por um magistral e rico caleidoscópio musical que torna este disco um dos mais bonitos lançados pelo grupo inglês.

No entanto, Songs of a Lost World tem um porém. Não é um álbum que vai agradar aos fãs dos hits clássicos e moderadamente alegres – porque é impossível ser 100% feliz na cultura do rock gótico em que o The Cure perfeitamente se insere – como “Friday I´m in love” ou “In Between Days”.

Pelo contrário. Robert Smith faz questão que o seu álbum tenha o tempo que precisa ter, os arranjos que precisam ter e que a sua voz só apareça quando ele achar que deve aparecer. Não é por acaso que as canções do disco são longas, sempre acima de quatro minutos, e que ele começa a cantar na faixa de abertura, a soturna “Alone”, só aos 3:22, quase na metade da faixa. Em “Endsong”, que fecha o disco, Smith só começa a cantar aos 6:24, depois de um longo e labiríntico momento instrumental em uma faixa que tem 10:23 de duração.
 
 
“Alone” dá de cara o tom melancólico do álbum: “This is the end/Of every song that we sing/The fire burned out to ash/And the stars/Grown dim with tears” (Este é o fim/De cada música que cantamos/O fogo se apagou em cinzas/E as estrelas/Se escurecem com lágrimas”. A canção segue com um teclado quase etéreo enquanto Smith declama a letra com a sua voz grave, que será uma tônica em praticamente todo o álbum.

Smith está cantando lindamente em todo o disco e é quase possível sentir o seu luto em faixas como "All I ever Am" e “And nothing is Forever”, marcada pela guitarra na abertura e os teclados de Roger O ´Donnell. Nesta música, Smith fala sobre a mortalidade e reflete sobre a finitude da vida.

É natural que depois de ter passado pela perda dos pais e do irmão ao longo dos últimos anos, Smith reflita mais sobre o fim. Quando se é jovem e vivendo na cultura gótica, é quase cool falar e cantar sobre a morte. Especialmente porque ela é relativamente distante de você. É quando a morte começa a atingir as pessoas que amamos do nosso entorno que o diálogo sobre ela ganha outros contornos e as reflexões ficam mais sérias. E parece ser isso o que diferencia o The Cure e, mais particularmente, o Robert Smith dos anos 1980 para o artista de Songs of a Lost World. Principalmente porque além das perdas de Smith, a própria banda enfrenta um problema de saúde grave, o câncer de O´Donnell, diagnosticado em 2023, mas só revelado para o público em setembro deste ano.

Esse diálogo com o luto atinge o seu auge em “I can never say goodbye”. Esta pode não ser a melhor faixa do álbum, ainda que tenha um solo de guitarra tão sufocante quanto deslumbrante, mas é uma canção muito importante para o processo de superação do luto de Smith por ser explicitamente sobre o seu irmão: “I can´t wake this dreamless sleep however I hard to try/I´m down on my knees, empty inside/From out the cruel and treacherous night/Something wicked this way comes/To steal away my brother´s life” (“Não consigo acordar desse sono sem sonhos, por mais que eu tente/Estou de joelhos, vazio por dentro/Algo maligno vem por ai/Da noite cruel e traiçoeira/Para roubar a vida do meu irmão”).
 
 
O tom melancólico do álbum só é quebrado parcialmente em dois momentos. Em “A fragile thing”, canção marcada pelo trabalho de bateria e percussão de Jason Cooper e pelo solo de guitarra de Reeves Gabrels, ainda que o tema da música gire em torno da solidão e desolação.

Já “Drone: Nodrone” é de longe a canção mais alegre do álbum. Ela destoa ao mesmo tempo em que provoca uma quebra na taciturnidade do disco exatamente quando ele está chegando na metade. Se fosse um álbum lançado como um LP do passado, possivelmente “Drone: Nodrone” abriria um potencial lado B.

Songs of a Lost World mostra que pode haver muita beleza na melancolia e nas reflexões sobre a finitude da vida. É impossível não traçar algum paralelo entre o novo álbum do The Cure e Blackstar (2016), o derradeiro trabalho de David Bowie. No caso de Bowie, evidentemente, o cantor estava refletindo sobre a própria finitude. Tanto que ele faleceu no dia 10 de janeiro daquele ano de 2016 decorrente de um câncer no fígado, dois dias após o lançamento do disco. No caso do The Cure, esperamos que a linha de chegada da longa jornada da vida da banda e de seus integrantes ainda esteja distante e que ainda possamos apreciar ainda muitos excelentes momentos como o de Songs of a Lost World.

Marcelo Alves

Acredita que o bom rock and roll consiste em dois elementos: algumas ideias na cabeça e guitarras no amplificador. Fã de cinema e do rock nas suas mais variadas vertentes, já cobriu diversas edições do Rock in Rio no Rio e em Lisboa e uma do Monsters of Rock. Desde 2014, faz colaborações para o site "Rock on Board". Já trabalhou em veículos como os jornais "O Globo" e "O Fluminense".

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