Novo álbum do Metallica é cru, despretensioso e direto na cara

 
Metallica

72 Seasons
⭐⭐⭐⭐ 5/5
Por  Zeone Martins 

 
A linha de trabalho do Metallica depende das decisões da dupla Lars Ulrich James Hetfield, fundadores do grupo. Em 1982, poucos meses após se conhecerem, registraram "Hit The Lights" em um gravador de 4 canais, convidando o guitarrista Lloyd Grant para os solos e não perder a vaga na coletânea Metal Massacre, primeira numa futura série de lançamentos de novas bandas do selo Metal Blade, Kill'em All, seu álbum de estreia, desenvolveu as faixas registradas na demo No Life 'Til Leather junto de novas composiçôes.

Em Ride The Lightning e Master of Puppets, o trabalho era um pouco mais colaborativo, com Cliff Burton Kirk Hammett tendo input sobre as canções elaboradas pelos cabeças da banda, em diferentes fases de desenvolvimento. Com a morte do baixista, o isolamento da dupla de tornou muito maior com uma participação do guitarrist-solo apenas no final do processo de demos, quando isso, em ... And Justice For All e Metallica.  Load, ReloadSt. Anger e em partes, Death Magnetic, foram álbuns com uma abertura maior cada um com sua intensidade. Com esta proposta, o grupo iniciou o processo de composição com rascunhos que consistiam em poucos riffs, a serem trabalhados entre os 4 integrantes, ou duplas com Lars Ulrich, presente em todo o processoem vez de faixas desenvolvidas á 4 ou 6 mãos, com alteraçôes sutis nas etapas de gravação, como em Hardwired...  To Self-Destruct.
  
No período de divulgação do novo álbum, décimo segundo na carreira do grupo, muito se falou do título e do direcionamento lírico de suas doze canções. E o tema das letras, direta ou indiretamente trata os primeiros 18 anos de vida, seu impacto na construção do indivíduo, traumas, decepções e desilusão, é um 72 Seasons trabalho que recompensa quem acompanha as 12 faixas com atenção ao conteúdo lírico, com James Hetfield expondo passagens  espinhosas para qualquer um. Experimente, por exemplo, ouvir "Shadows Follow" imaginando-se ouvindo o relato de uma criança para assimilar o tom dos versos. vulnerabilidade, naquele sentido de se expor. 
 
O novo registro apresenta faixas com muitas mudanças de andamento, variações derivando de um mesmo trecho, mostrando uma desconstrução da amálgama de riffs numa mesma canção, muito presente em ...And Justice for All e Death Magnetic. E mesmo com os integrantes por volta ou já com 60 anos completos, as músicas apresentam tonalidades diferentes, até mais agudas do que o normal da banda, algo que não acontecia em seu ótimo antecessor, que tinha quase todas as músicas, pelo a princípio, no mesmo tom. James Hetfield canta notas agudas sem esconder os efeitos da idade, e também traz uma interpretação mais do médio para o grave em várias canções, se saindo bem nas duas abordagens.
 
 
Entre "72 Seasons" e o final do trabalho, há uma bem-vinda diversidade na tracklist,  com o primeiro single "Lux Æterna", representando um lado mais relaxado da banda, tanto em letra, quanto na performance rápida, pesada mas com um clima mais NWOBHM, que também aparece em "Screaming Suicide", mas com esta também pendendo para o hard rock dos anos 70.

Inclusive, os primeiros singles me deixaram pensando se seria um trabalho que exploraria as primeiras influências da banda, com um som que remetesse ao final dos anos 70 e começo dos anos 80, com a abordagem atual dos integrantes. ouvindo o restante dos singles e depois, o álbum por completo, logo passou tal impressão, com os singles representando uma sonoridade mais próxima ao 'tradicional' do grupo, sem se repetir, felizmente, e guardando ótimas surpresas entre as oito faixas  que completam o repertório do álbum. Pois, a faixa-título, que também abre o trabalho, se inicia de uma linha de baixo grudenta e eficaz do sensacional Robert Trujillo, de palheta, que funciona como gancho da canção, voltando tanto na ponte quanto sustentando, isoladamente, as guitarras e o vocal no refrão, com diferentes passagens ao decorrer da música, enquanto "Room Of Mirrors", penúltima do álbum têm uma levada que mistura muito punk e metal, tendo bom resultado, assim como acontece no refrão e partes pré-solo de "Too Far Gone", que , por contraste, pende mais para o lado heavy metal em suas bases. 

"Sleepwalk My Life Away"  na intro se assemelha muito aos trabalhos de 1990-1995 do Suicidal Tendencies, e logo apresenta uma ponte com o Metallica dos anos 90 e o peso de Mob Rules, como se este fosse gravado nos anos 2020, com aquele peso arrastado característico do subestimado álbum. Curiosamente, a faixa seguinte, "You Must Burn!", também segue um andamento cadenciado, com um jeito de Dehumanizer, contando até com uma vocalização a la Alice In Chains, que vez outra aparecia tanto no álbum do Black Sabbath, quanto em Load e Reload, vide "The House That Jack Built" e "Where The Wild Things Are", faixas experimentais dos (injustamente) criticados trabalhos da banda. 
 
 
"Crown Of Barbed Wire" tem muito em comum com outro momento do Alice in Chains, em proximidade com os trabalhos da fase retorno da banda, com o vocalista William Duwall, mais pro lado instrumental, tenso e nem tanto para as harmonias vocais tão presentes no grupo de Seattle. "Chasing Light" é outra que aposta em vocais agudos, em especial no refrão e acelera de novo o disco, com sua letra fazendo um breve comentário sobre como lidar com a situação  com moradores de rua, em altas quantidades tanto nos Estados Unidos, quanto aqui no Brasil.

"If Darkness Had A Son", terceiro single do trabalho, e talvez a música mais 'grudenta' do novo repertório, tem ótimos riffs, uma ótima levada de bateria nos versos e aposta em um instrumental bem construído, que funciona bem para o peso e também para ancorar os vocais. Vale um destaque tanto aqui, quanto no álbum por completo, para as linhas vocais, que desta vez foram desenvolvidas logo no início no processo de composição, ao invés de algumas ideias no começo e um trabalho maior no final, como era o costume da banda. Com os 4 integrantes no processo desta, abriu-se uma porta para um diálogo diferente entre partes das músicas, sendo que o som do Metallica, com exceção de alguns álbuns (Metallica, Load/Reload, St. Anger), se baseava em guitarras mais inflexíveis na construção das músicas, com outros detalhes acontecendo mais em órbita da ideia central das canções.

Como encerramento, "Innamorata" aparece com um instrumental mais circular, mais 'drone' em algumas partes. Também apostando em um andamento mais arrastado, nos riffs aparece uma versão 'infernal do riff de "Are You Gonna My Way" (sim, de Lenny Kravitz) e um una sonoridade mais aberta no refrão, outro destaque da interpretação de James Hetfield, impecável nos diferentes vocais da canção, que ainda apresenta um intrincado dueto de guitarras escrito pelo guitarrista, talvez o maior (em extensão e impacto) desde "My Friend Of Misery", 'épico' escondido de 1991, com uma extensa levada de baixo de Robert Trujillo amparando os vocais no meio da canção. Com dois ótimos solos de Kirk Hammett, em especial o último, com seu som mais 'clean' contrastando com o peso das bases até o encerramento dos 11:11 da música, a maior já gravada pela banda.

Após o segundo processo de reabilitação de James Hetfield, todo o período da pandemia, interagindo e compondo e ensaiando partes e trechos pelo aplicativo Zoom, o Metallica em elaborar o seu novo álbum num processo mais imersivo para todos os integrantes. Um dos trabalhos mais urgentes e 'na cara' da banda, junto de Kill 'em All e St. Anger, três discos gravados em situações tão distintas, adversas e que funcionam a sua maneira. 72 Seasons acerta num som cru e repertório variado, em momentos até despretensioso, que tem ótimos resultados. Entre bandas rápidas, técnicas, mais pesadas ou o que for, o Metallica é o dos melhores compositores: dos anos 80 até hoje, este é o forte da banda. Vale mostrar 72 Seasons até para quem não gosta do trabalho do grupo californiano. 

Zeone Martins

Redator, tradutor e músico. Coleciona discos e vive na casa de vários gatos. Ex-estudante de Letras na UFRJ. Tem passagens por várias bandas da região serrana e da capital fluminense.

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