Bob Dylan
Rough And Rowdy Ways
⭐⭐⭐⭐✰ 4/5
Por Marcelo Alves
Idade
é só um número. E não te impede de realizar obras de arte vigorosas e
relevantes para a indústria cultural. Este parece ser o recado implícito dado
por Bob Dylan, que em seus recém completados 79 anos (seu aniversário foi no
dia 24 de maio), colocou nas ruas ainda semiconfinadas e cobertas por algum
medo da pandemia de coronavírus e nos aplicativos de música seu 39º álbum de
estúdio.
Rough
and Rowdy Ways pode não ter hits que alçaram Dylan ao patamar de estrela
internacional como “Blowin´ in thw Wind” (1963) e “The times they are
a-Changin´” (1964). E talvez este nem seja mais o objetivo de cantor. Mas é um
álbum que mostra um Dylan que ainda tem muito a refletir sobre o mundo e a
sociedade e histórias a contar.
Oito
anos depois do seu último álbum de inéditas, The Tempest (2012), o prêmio
Nobel de literatura de 2016 nos apresenta um disco cercado de referências e
reflexões sobre a política e a cultura americanas. Sobre seus mitos, suas
idiossincrasias e as belezas de paisagens americanas. Tal qual os artistas da geração
beat que ele mesmo cita na letra de “Key West (Philosopher Pirate)”, Allen
Ginsberg, Gregory Corso e Jack Kerouac, Dylan usa suas letras inspiradas e
calcadas no blues, no folk e no seu jeito declamado de cantar para sair como um
nômade cantando e refletindo sobre a história americana. Mas sempre deixando a
impressão de que usa a história para jogar um olhar sobre a atualidade e os
recentes acontecimentos do mundo e dos Estados Unidos. Há muitos simbolismos em
“Rough and Rowdy Ways” e parece ser necessário experiência de vida para
decifrar todas as letras. Ainda que seja perfeitamente possível apreciar o álbum
em si mesmo, sem grandes viagens filosóficas.
Álbum
este, que, contudo, está longe de ser palatável. Parafraseando o seu título,
Dylan nos convida a viajar por estradas ásperas e turbulentas em que, por
vezes, é necessário ouvir mais de uma vez uma ou outra canção para tentar
compreender onde o cantor pretende chegar. É natural. Não temos todas as
referências, nem a vivência de Dylan.
Talvez
entre as dez canções do álbum, as mais inteligíveis sejam as de pegada mais “blueseira”.
Como “False Prophet”, história de uma pessoa talentosa, um pouco amargurada, um
tanto solitária, que canta canções de amor e traições e vive em busca de
vingança. Ou
mesmo “Goodbye Jimmy Reed” e sua visão cínica sobre a religião como a primeira
estrofe mostra: “I live on a street name after a Saint/Women in the churches
wear powder and paint/Where the Jews, and Catholics, and the Muslins all pray/
I can tell they´re Proddie from a mile away/Goodby Jimmy Reed, Jimmy Reed
indeed/Give me that old time religion, it´s just what I need”.
Dylan
é ácido e irônico na letra de “Jimmy Reed”, uma das melhores do disco. Fala num
cenário quase de teatro em que se bate na Bíblia para proclamar um credo e em
contar histórias reais no alto da montanha, mas num tom puritano.
O
mesmo tom também é encontrado em “My own version of you”, onde Dylan afirma ter
visitado mesquitas e monastérios e aprendido sânscrito e árabe para juntar as
partes de um todo e criar a versão dele de um salvador, que fará de tudo para
beneficiar o seu próprio grupo (“I wanna do things for the benefit of all my
kind”). O que mostra uma inversão da lógica de um Deus que cria o homem à sua
imagem e semelhança. Ele quer é criar um Deus à sua imagem e semelhança
idealizada e para benefício próprio. E no meio da canção, Dylan solta suas
ironias ao misturar a este caldeirão religioso, onde ele vai trazer à vida
alguém que nunca viu (“bring someone to life, someone I´ve never seen”) com
referências à cultura pop como o bandido Scarface, feito por Al Pacino no filme
de 1983, e um vândalo de “O Poderoso Chefão” (1972). Toda uma narrativa que
precisa ser misturada e comandada por um robô criado para lhe salvar: “I´ll be
saved by the creature that I create”.
Aqui
temos uma demonstração do verdadeiro festival de referências que Dylan tem no
álbum. Pois toda esta criatura imaginada em “My own version of you” precisa
“tocar piano como Leon Russell”, músico e compositor country americano, mas
também como Liberace, popular pianista, cantor e showman americano entre as
décadas de 50 e 70 do século passado, além de João, um dos apóstolos de Jesus.
A
canção ainda parafraseia Shakespeare (“Can you tell me what it means to be or
not to be?) apenas para mais a frente concluir, sempre com um certo tom
sarcástico, que as respostas estão em sua “criatura” pronta e com uma história
bem fundamentada, mistura de mito, fé e show: “I can see the history of the
whole human race/It´s all right there, it´s carved into your face/Should I
break it all down? Should I fall on my knees?”
Impossível
não associar que Dylan não esteja pensando também sobre os falsos profetas de
hoje, que espalham histórias falsas e compõem narrativas fantasiosas ao seu bel
prazer. E isso vai para além da religião, chegando nos falsos profetas da
política, que prometem a salvação, mas a salvação é somente para os seus.
O
caldeirão de referências também é encontrada na boa canção que abre o disco, “I
contain multitudes”, um libelo da multidiversidade que, na visão do cantor, um
ser humano é capaz de conter dentro de si. Uma canção que mostra que o ser
humano é mais diverso do que as caixinhas classificatórias que a cultura das
redes sociais impõe. O título da música foi tirado do poema “Song of Myself”,
de Walt Whitman, e nela encontramos uma série de referências que vão do
clássico e erudito (Beethoven, Chopin, Poe, William Blake) ao pop (Indiana
Jones, Rolling Stones). É aqui que Dylan canta o quão e múltiplo em versos como
“I´m just like Anne Frank, like Indiana Jones/And then British bad boys, The
Rolling Stones/I go right to the edge/I go right to the end/I go right where
all things lost are made good again/I sing the songs of experience like William
Blake”.
Ainda
há espaço para uma canção romântica, “I´ve made up my mind to give myself to
you”, talvez a mais fraca do álbum, e um Dylan um tanto quanto trovador em
“Black Rider”.
As
duas canções mais longas encerram o álbum. “Key West (Philosopher Pirate”), de
pouco mais de nove minutos, e “Murder Most Foul”, um épico de 16 minutos e 54
segundos que supera em 23 segundos “Highlands”, do álbum “Time out of mind”
(1997), como a canção mais longa da carreira do cantor.
“Murder
most Foul” merece um destaque à parte. A canção é toda uma reflexão de Dylan
sobre a cultura americana após um marco de sua história, o assassinato do
presidente John F. Kennedy, em novembro de 1963, em Dallas. A canção praticamente
resume os temas do álbum ao colocar o assassinato de Kennedy como o ponto de
partida de uma decadência dos valores e da cultura americanos. Mas em meio ao
sonho que virou pesadelo – “Living in a nightmare on Elm Street”, trocadilho
com o filme “A hora do pesadelo”, popular filme de terror de 1985 -, Dylan nos
deixa uma mensagem de esperança. Quase como que em momentos de trauma nacional
- e por que não pensar num trauma mundial como a pandemia de coronavírus, que a
cada dia apresenta um número enorme de mortes? – devêssemos buscar um conforto
na arte. Especialmente na música.
E
nos minutos finais, Dylan enfileira uma playlist que cita festivais como
Woodstock e Altamont, e artistas como Beatles, The Who, Charlie Parker, John
Lee Hooker, Guitar Slim, Don Henley, Queen, Carl Wilson e outros tantos, para
encerrar com uma autorreferência: “Play Murder Most Foul”.
Rough and Rowdy
Ways é um álbum de um homem vivido que revisita a sua história, que por sua
vez se amalgama com a própria história de boa parte do século XX. E é a
história que Dylan usa como material para refletir sobre os acontecimentos do
presente. Seu álbum tem uma força e uma atualidade que mostram que o cantor
segue atento ao que se passa no mundo. E desejando participar deste debate.
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