David Bowie se foi, mas não antes de deixar seu testamento

Foto: Divulgação

Por Lucas Scaliza

"Olha pra cá, estou no Céu. Tenho cicatrizes que não podemos ver".

Agora ficou claro: os versos iniciais de “Lazarus” são partes de um testamento, uma forma de David Bowie nos contar o que se passava dentro dele, dentro de sua mente e corpo. Inicialmente, a mensagem estava cifrada no meio do enigmático Blackstar ★, seu último e novíssimo álbum. Mas a notícia de sua morte - em decorrência de um câncer - nos ajudou a tentar entender o que ele enfrentava e porque agonizava numa cama de hospital no estranho e sensacional clipe de “Lazarus”. Bowie, já sabido que sua estadia na Terra estava chegando ao fim, decidiu manipular seus últimos trabalhos (disco e clipes) para que refletíssemos o que se passava realmente com ele. Era apenas um generoso testamento. 

David Robert Jones não era apenas um músico. Era um artistas dos mais completos, dotado tanto da capacidade de arrebatar o público como de aterrorizá-lo com suas performances e propostas artísticas excêntricas e conceituais. Foi inquieto até o fim. Diferente da maioria dos seus colegas, que acomodavam-se a não propor ideias novas, Bowie foi original ao longo de 50 anos, surpreendendo público e crítica, muitas vezes indo além de seu próprio tempo, ficando sempre vários passos à frente de qualquer outro.

Foi lançado ao estrelato com “Space Oddity” e seu Major Tom, personagem espacial que nunca se distanciou dele, reaparecendo em “Hallo Spaceboy”, “Ashes To Ashes” e até no clipe da nova e sombria “Blackstar”, fechando o ciclo. Encarnou vários personagens ao longo da década de 1970 para expressar suas ideias. O mais conhecido deles é, sem dúvida, o extraterrestre Ziggy Stardust (embora a foto mais famosa seja de Aladdin Sane), não apenas por ser o centro de um dos álbuns mais celebrados de sua discografia, mas porque Bowie, como aprendemos com sua história e seus atos, sentia-se realmente um E.T. na Terra. Só que ao invés de sentir-se impotente frente à inadequação, ele usava sua arte para dar voz a sua condição de outsider. Se fazem comparações entre ele e o escritor Oscar Wilde, já que ambos foram dândis da arte. É possível compará-lo ao escritor Thomas Mann também, que marcou a literatura alemã para sempre usando como matéria-prima para seus escritos sua condição de outsider.

O mais irônico nessa situação é que Bowie aproveitou muito bem sua condição de home bem-sucedido na música, reconhecido, milionário e famoso. Tudo isso lhe abriu portas, lhe trouxe prazeres (homens, mulheres, drogas, família) e lhe garantiu a emancipação artística, podendo fazer o que bem entendesse. Ele não se acomodou e seguiu pressionando o mundo pop com seu jeito de pensar, de encarar a sexualidade, de transmutar sua música de rock para soul, para funk, para música ambiente, eletrônica, drum’n’bass e, finalmente, para o jazz. Bowie estava no centro do turbilhão do mundo pop, feito um dândi, mas permanecia um - mais uma vez - outsider.

De uma forma ou de outra, David Bowie influenciou toda a música que foi produzida do final de 1960 até hoje e, com certeza, sua presença continuará reverberando por muitas décadas. Ele também mexeu com o cinema, mas quem é da fotografia e da moda sentem com mais consistência o peso de suas contribuições vanguardistas.

De acordo com seu amigo e produtor de longa data, Tony Visconti, Bowie sabia que estava chegando sua hora e que Blackstar ★ seria sua última contribuição musical para o mundo. Fez um disco sombrio, melancólico e até mesmo exigente e experimental. Ou seja, Bowie não deixou de ser Bowie - de ser original e crítico - até o último suspiro de seu corpo. Antes, quando já estava recluso há muitos anos e ninguém esperava que fosse voltar aos holofotes, lançou The Next Day (2013), um disco que alcançou sucesso rapidamente, mostrando não apenas musicalidade em suas veias, mas muita vontade de se expressar. The Next DayBlackstar ★ estão cheios de letras críticas para com a sociedade, e de sentimentos profundos, de doença e guerra, de solidão e sexo, de amor e morte.

De StarmanBlackstar ★, ele foi realmente uma estrela de brilho único. Durou apenas 69 anos, mas seu impacto foi imediato - muito mais rápido e duradouro do que qualquer outra estrela do firmamento. E enquanto algumas estrelas passam a vida emitindo os mesmos raios de luz, David Bowie nos instigou de diversas formas, inspirando a sermos nós mesmos, fosse lá o que cada um de nós quisesse ser.

Ele nos deu adeus consciente de seu lugar no mundo, sem nenhuma arrogância. Aliás, foi até mesmo humilde em compartilhar conosco sua dor no leito de morte, sendo devorado há 18 meses por um câncer. Nós, é que só nos demos conta do que ele queria dizer, apenas no fatídico dia de sua morte. É um adeus para o corpo físico, mas não é o fim. Sabemos que há um starman esperando no céu. Enquanto isso, não deixem de ler e ouvir o testamento final, chamado Blackstar ★ [e assista ao vídeo review especial sobre o mesmo AQUI].

Bruno Eduardo

Jornalista e repórter fotográfico, é editor do site Rock On Board, repórter colaborador no site Midiorama e apresentador do programa "ARNews" e "O Papo é Pop" nas rádios Oceânica FM (105.9) e Planet Rock. Também foi Editor-chefe do Portal Rock Press e colunista do blog "Discoteca", da editora Abril. Desde 2005 participa das coberturas de grandes festivais como Rock in Rio, Lollapalooza Brasil, Claro Q é Rock, Monsters Of Rock, Summer Break Festival, Tim Festival, Knotfest, Summer Breeze, Mita Festival entre outros. Na lista de entrevistados, nomes como Black Sabbath, Aerosmith, Queen, Faith No More, The Offspring, Linkin Park, Steve Vai, Legião Urbana e Titãs.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem
SOM-NA-CAIXA-2