Qual é a função de uma caixa recompilatória de faixas inéditas em tempos de streaming? Lançar álbuns engavetados e esquecidos em rolos dentro de armários de estúdios ou em latas em depósitos abandonados?
Para que se dar ao trabalho de ouvir tudo isso novamente, se o material não passou pelo crivo crítico do artista na época em que foi gravado, editado e produzido? Falta material novo? Falta inspiração? Seria um capricho, ou a intenção é realmente agradar a colecionadores e completistas?
Às vezes, álbuns completos engavetados viram esboços, esqueletos ou demos de um álbum seguinte. Ou seja, muitas vezes são conectores entre eras ou a fonte de inspiração para novas empreitadas dentro do estúdio. As histórias de álbuns descartados não são novidade; Aerosmith, Kiss e Prince sempre contaram essas histórias. O próprio Bruce Springsteen é famoso pela concepção de seu álbum Born In The U.S.A., supostamente feito a partir da seleção de material de sessões caseiras que começaram no embrião do projeto Nebraska.
Os fãs de Springsteen são fascinados por cada detalhe e caminho do seu processo criativo. No intervalo entre Born to Run e Darkness on the Edge of Town, Springsteen se internou no estúdio e gravou sem parar, testando todas as possibilidades ao seu alcance. A era punk rock era uma novidade e, por causa da pausa forçada pela mudança de contrato e manager que o vetava de lançar novo material, dezenas de canções foram arquivadas e testadas antes do lançamento de The River. Dessas sessões, saiu "Because The Night", que foi dada a Patti Smith, e, nesse mesmo cenário, quase foi "Hungry Heart", que seria para os Ramones. Muitas dessas canções saíram em reedições - Deluxe - dos albums: "Darkness on The Edge of Town", "The River" e na caixa de canções inéditas Tracks de 1998.
O espaçamento deixado na discografia oficial lançada por Springsteen nos anos 1990 sempre foi uma pergunta constante. Somente um álbum acústico, uma coletânea com três canções novas, a separação da E Street Band, o single "Streets of Philadelphia", uma caixa com 66 arquivos perdidos e somente três discos de canções inéditas. Springsteen realmente estava aproveitando o tempo para erguer um novo matrimônio e ver o crescimento de seus filhos, mas nunca deixou de gravar em estúdios e testar seus métodos criativos.
Fãs e colecionadores da obra do Boss são obcecados por cada pequeno pedaço de história e produção deixados no meio do caminho. Músicas gravadas e mixadas que permaneciam em latas em estúdios e galpões, engavetadas, esquecidas, impedidas de serem ouvidas pelo público. Um exemplo da potência ou das virtudes de algumas dessas sobras é a cultuada "No Surrender" do álbum Born In The U.S.A. de 1984. Sim, ela foi quase jogada num armário para ser engavetada, mas foi incluída novamente no repertório que seguiu para a fábrica de discos.
A principal diferença da coletânea Tracks de 1998 para a parte 2, lançada em 2025, é que esta nova coleção é composta por álbuns completos engavetados, e não por faixas avulsas de diferentes sessões. A revista Pitchfork deu nota 8.5 à caixa Tracks II: The Lost Albums, a inacreditável continuação para a coleção de canções inéditas de 1998, Tracks. O projeto tem sete discos completos gravados, mixados e produzidos entre 1983 e 2019. São 83 novas canções separadas por sessões. Na versão em vinil, cada LP tem título e trabalho gráfico diferente, o que faz da experiência "arqueológica" algo bastante palatável, agradável e facilmente compreensível. É uma lástima que, nas plataformas de streaming, os arquivos foram separados em discos sem o nome de cada projeto.
O disco que abre a caixa é "Garage Sessions", gravado em 1983, em sua residência. Foram gravações feitas entre a finalização do álbum Nebraska (gravado em 2 canais numa fita cassete) e a preparação do material para seu álbum de maior sucesso, Born In The USA. "Garage Sessions '83'" representa o que teria acontecido com "Nebraska" se tivesse sido regravado por uma banda completa e com múltiplos instrumentos. Springsteen tinha um embrião "indie rock" em pleno boom do new wave e do post-punk (algo muito diferente e à frente de seu tempo para 1983).
No disco 2 está "Streets of Philadelphia Sessions", de 1994, onde encontramos Bruce testando sua criatividade com loops de bateria eletrônica e teclados, quase chegando ao trip hop, em dez canções. As únicas canções lançadas foram a que dá título à sessão, "Streets of Philadelphia", obra ganhadora do Grammy e do Oscar, incluída na trilha sonora do filme "Philadelphia", e a faixa "Secret Garden". No entanto, a segunda foi regravada em outra versão e incluída no álbum "Greatest Hits" de 1995. Durante décadas, fãs ouviram falar dessas gravações; era uma lenda ou fábula que todos os seguidores esperavam que virasse realidade, ou que surgisse em algum momento em versão pirata ou arquivo para download clandestino.
O mito de gravações e cofres com canções esquecidas ou escondidas, esboços e demos, é algo comum na discografia de artistas como Neil Young (Official Release Series) e Bob Dylan (Bootleg Series), que, assim como Springsteen, as estão lançando ainda em vida. Um aprendizado deixado pelos espólios de Jimi Hendrix, Johnny Cash, Elvis, Prince, Frank Zappa e Tom Petty, que tiveram que ordenar catálogos arquivados para lançamentos de álbuns póstumos. As explicações dadas por Springsteen para ter deixado tantos álbuns completos sem chegar às lojas de discos variam.
O álbum 3, "Faithless", é a trilha sonora para um filme de "cowboys" num contexto religioso-espiritual de fé, que nunca saiu do papel. Um compromisso adquirido pelo Boss no início dos anos 2000 e composto em duas ou três semanas na Flórida, incluindo vinhetas e instrumentais. Essas gravações ficaram durante 22 anos aguardando a esperança ou a promessa de sair do papel para um estúdio e a telona. Já ficou em andamento por tempo suficiente; chegou o momento de sair via seu criador.
Num vídeo de 17 minutos disponível em seu canal oficial do YouTube, ele revelou que, após três álbuns seguidos falando de relacionamentos, não queria lançar um quarto e decidiu trocar o foco. Ele falava da sequência Tunnel of Love (1987) e os álbuns gêmeos de 1992, Lucky Town e Human Touch. Assim, as "Philadelphia Sessions" foram esquecidas e engavetadas. Springsteen não queria entregar um quarto álbum de relacionamentos para seus ouvintes em 1994. Ao mesmo tempo, também acontecia a reunião da E Street Band para a coletânea "Greatest Hits" de 1995. Muita coisa ao mesmo tempo, e o Boss não para nunca. Assim, em maio do mesmo ano chama outros músicos e grava "The Ghost of Tom Joad" e "Somewhere North of Nashville"(inédito até 2025)
O Disco 4 da caixa "Tracks II", "Somewhere North of Nashville", é bastante alegre e com influência country. Eram canções que foram gravadas nas mesmas sessões de Tom Joad. A ideia original era um álbum duplo, mas no final o repertório resultou incongruente. Como misturar canções sérias e até algo sombrias do The Ghost of Tom Joad com outras totalmente animadas e com outro espírito? "Somewhere North of Nashville" inclui canções como "Tiger Rose" e "Blue Highway".
O disco 5, "INYO", é uma coleção de canções gravadas durante a turnê do citado Tom Joad; algumas delas terminaram no álbum Devils & Dust (2005). Nessas sessões, um grupo de canções inspiradas na cultura mexicana, das fronteiras dos Estados Unidos, traduções de poesia em espanhol e relatos da guerra pela água na Califórnia, viraram tópicos em "INYO".
"Twilight Hours", o disco 6, foi gravado ao mesmo tempo que o álbum Western Stars de 2019. Inclui gravações do cantor num holofote mais popular, menos "cabeça". O Boss, pela primeira vez, cantando na linha de um Frank Sinatra, com títulos bastante românticos como "Sunday Love", "Two Of Us" e "September Kisses" — sobre amores na cidade. Realmente algo diferente e pouco provável no catálogo de Springsteen.
Bastante cinematográfico, "Twilight Hours" relata uma história de amor, com todas as características e personagens: uma mulher, uma arma e um homem em problemas. Tudo em um estilo musical totalmente diferente de Western Stars. Um verdadeiro curso de 360 graus para quem acredita que o cantor de Nova Jersey se encaixa exclusivamente em gêneros específicos como o pop rock, americana ou country.
O álbum 7, "Perfect World", é o mais próximo do som clássico da E Street Band, incluindo gravações com muitos de seus membros. A faixa "I'm Not Sleeping" poderia estar em Born to Run, Darkness on The Edge of Town, The River ou The Rising. Excelente trabalho roqueiro. "Rain in The River" era para ter entrado em Wrecking Ball de 2012.
Ao final de sete álbuns completos, temos a certeza de poder compreender todas as rotas, veredas e caminhos que Springsteen percorreu para decidir lançar novidades ou um álbum completo sem erros. Claro que a percepção individual torna a experiência de cada ouvinte diferente. Assim, algo que para Springsteen possa parecer incompleto ou inadequado pode ser a canção milagrosa ou salvadora para o fã no Brasil, na Índia ou na Nicarágua. Música é feita para compartilhar, e nos moldes atuais da indústria, com streaming disponível para todos, onde vendas não são mais importantes, e o produto físico (K7, LP, CD, DVD, Blu-ray) não é um risco financeiro, permite-nos ter a obra completa com todas as lacunas preenchidas.
Springsteen já anunciou que existe um projeto Tracks III em andamento para continuar completando o quebra-cabeça de uma discografia impressionante e completa. Bruce Springsteen, o contador de histórias, com personagens populares e referências ao automóvel como veículo para levar do ponto A ao ponto B num imaginário infinito para representar a classe trabalhadora num contexto social, para gritar pelo cidadão esquecido e abandonado pela fortuna, fé ou a própria vida.
Springsteen sempre representou em seu repertório o homem comum que não tem voz para os governos ou exércitos. O homem que acorda, trabalha e nunca chega ao sucesso. Springsteen é a voz da esperança para milhões ao redor do mundo e não somente nos Estados Unidos. Escute a caixa Tracks II lançada no 27 de junho de 2025, por etapas, com atenção; tente ir ao projeto paralelo daquele ano, junte a discografia, o pré e o pós, e sinta o amor de um artista por cada detalhe de sua obra.