Há 40 anos, era lançado “The Unforgettable Fire”, a transição musical do U2

 
Assim como a história das nossas vidas, a evolução de uma banda é fruto de um acúmulo de experiências, acertos e erros e um álbum pode, em alguns momentos, ser visto como uma transição para um próximo disco, um início de ideias, um amadurecimento de pensamentos que viriam a desembocar eventualmente num clássico. Há 40 anos o U2 parecia estar vivendo um momento semelhante a este quando lançou o álbum The Unforgettable Fire.

Lançado no dia 1º de outubro de 1984, The Unforgettable Fire é uma pérola meio esquecida na discografia do U2. Com a passagem do tempo e as diferentes fases estéticas e musicais que a banda viveria nas quatro décadas seguintes, o álbum acaba por ser pouco lembrado fora do círculo dos fãs fiéis. No entanto, foi um disco importante porque iniciou uma transição musical e estética do grupo. The Unforgettable Fire tem um pouco do que o U2 era nos três primeiros álbuns, mas já ensaiava o que veríamos no The Joshua Tree, disco lançado três anos depois e que mudaria o patamar da banda no cenário musical do planeta.

É impossível falar de The Unforgettable Fire sem falar do momento que o U2 vivia naquela primeira metade dos anos 1980. Até o lançamento do disco, o grupo irlandês tinha três álbuns de estúdio – Boy (1980), October (1981) e War (1983) - e alguns hits como “I Will Follow”, “Two Hearts Beat As One”, “New Year´s Day” e o hino de protesto “Sunday Bloody Sunday”. O U2 já era uma banda em ascensão, que fazia sucesso e chamava a atenção, mas ainda não tinha feito a transição para o supergrupo que faria shows em estádios que veríamos a partir do final dos anos 1980.
 
 
Musicalmente, os três primeiros álbuns mostravam alguma semelhança. A influência do cenário musical europeu, especialmente o alemão e o inglês, os acordes ecoados da guitarra de The Edge que seriam substituídos por um som mais áspero em War, a combinação da influência do glam rock inglês com a experiência de ter tocado em bandas marciais na bateria de Larry Mullen Jr. e o estilo inconfundível do baixo de Adam Clayton, que enfatiza sempre as raízes dos acordes por conta da influência musical do som da gravadora Motown e do reggae, são marcas muito presentes nos três discos. E, em certos aspectos, sempre voltariam ao longo da carreira da banda.

Sobre as letras, ainda que Boy seja mais sobre a transição da adolescência para a idade adulta, October e War já conteriam temas que fariam parte de toda a carreira do U2 como espiritualidade, religião e os temas sociais e políticos tão caros ao cantor Bono Vox, também um ativista de causas humanitárias e casado há 42 anos com a ativista Alison Hewson.
 
A influência de Brian Eno
 
Quando começou a pensar no que viria a ser o seu quarto álbum, o U2 tinha em mente o desejo de mudar de direção. O grupo temia que ficasse única e exclusivamente marcado pelo pop-rock de arena e ambicionava fazer um trabalho mais artístico. Para tentar mudar, a banda resolveu contratar Brian Eno, produtor admirado por The Edge, especialmente por conta do ambiente musical que Eno conseguia criar e de suas colaborações com o Talking Heads.
 
Hoje um longevo colaborador da banda e um dos corresponsáveis por alguns dos melhores e mais marcantes álbuns do U2 como The Joshua Tree, Acthung Baby (1991) e All That You Can´t Leave Behind (2000), O produtor inicialmente era resistente em trabalhar com uma banda de rock como o U2. Eno estava pensando em se retirar da produção musical para se tornar videoartista. No entanto, foi convencido pelo discurso de coração aberto preparado pela banda e do quanto ela confiava que o produtor poderia dar uma grande contribuição para o futuro álbum. O produtor ficou particularmente interessado no discurso do grupo procurando experimentar diferentes técnicas de gravação e captação do ambiente de um espaço de gravação. Depois de concordar em produzir o álbum, Eno trouxe com ele o engenheiro Daniel Lanois para também trabalhar com a banda.

O resultado da parceria não poderia ter dado mais certo para as ambições do U2. The Unforgettable Fire é um disco com um som mais abstrato e atmosférico em comparação com War e com um som mais rico em comparação com o que vinha sendo feito anteriormente. A bateria militar de Mullen Jr. aqui ficava mais solta e o baixo de Clayton mais subliminar, fluindo em apoio às canções, mas mantendo perceptível a sua assinatura. Com o álbum, o U2 deixava para trás o estilo fincado no post-punk para um rock mais atmosférico que até combinava mais com letras de cunho político e social ou de espiritualidade que o grupo frequentemente produz.
 
 
The Unforgettable Fire foi inicialmente gravado no Slane Castle, em County Meath, na Irlanda, onde a banda viveu para buscar inspiração para suas composições. O álbum depois viria a ser finalizado no estúdio Windmill Lane, em Dublin. A foto da capa, no entanto, é do Moydrum Castle, que fica em Moydrum, também na Irlanda. Ela foi feita pelo hoje renomado fotógrafo, diretor de videoclipes e de cinema Anton Corbijn.
 
Por outro lado, o nome do álbum é uma referência a uma exposição vista pela banda sobre as vítimas da explosão da bomba atômica de Hiroshima, no Japão, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Uma das potenciais ideias de capa, inclusive, mostrava uma vista aérea de Hiroshima com um alvo desenhado, mas o grupo não considerou a ideia apropriada. Foi quando a banda, Corbijn e o designer Steve Averill começaram a viajar pela Irlanda em busca de lugares onde o fogo tivesse criado algo que fosse intrinsecamente diferente. A ideia era encontrar castelos ou casas incendiadas em que a estrutura remanescente tivesse presença e estilo. No fim, foi escolhido o Moydrum Castle, que na verdade nem era um castelo, mas uma antiga mansão.

A foto, no entanto, causou polêmica na época, pois ela é uma cópia da capa do livro In Ruins: The Once Grate Houses of Ireland, de Simon Marsden. Corbijn posicionou a sua máquina no mesmo ângulo e usou a mesma técnica para tirar a sua foto, cuja única diferença para a original era a presença do U2 na imagem. Por causa disso, a banda teve que pagar uma quantia não revelada para Marsden. Corbijn se desculpou na época e prometeu não repetir o mesmo erro no futuro. Tanto que depois ele voltou a colaborar com o U2 dirigindo os videoclipes de One (1991), Please (1997) e Electrical Storm (2002).
 
A música que ficou maior que o álbum
 
Embora tenha atingido os objetivos estéticos do U2, The Unforgettable Fire não foi exatamente um sucesso de público, tendo vendido apenas 3 milhões de cópias. Parece muito para qualquer banda, mas não é tanto se compararmos com as 11 milhões de cópias que War tinha vendido um ano antes. Porém, se o disco deu certo se deve a uma canção que ficou maior do que próprio álbum. Trata-se de "Pride (In The Name Of Love)".

Hoje um dos hinos da banda, "Pride" era o hit que o U2 precisava para que a parceria com Eno e Lanois não afundasse no primeiro disco.  A melodia e os acordes da música nasceram ainda na turnê do War, em 1983, no Havaí. Originalmente, a música seria uma crítica ao orgulho da escalada militar exibido pelo presidente estadunidense Ronald Reagan, mas Bono decidiu mudar a letra, pois considerou que Reagan não merecia tanta importância. Foi quando o cantor resolveu dedicar a canção a uma figura mais positiva, escolhendo o pastor e líder do movimento dos direitos civis Martin Luther King, assassinado em 1968.

"Pride" é a música do álbum mais convencional e comercial do U2 e não por acaso se transformou num enorme hit e foi escolhida para ser o primeiro single do álbum. Depois do seu lançamento, a banda foi convidada pela viúva de Martin Luther King, Coretta Scott King, para visitar o Martin Luther King Center, em Atlanta, nos Estados Unidos. Hoje, Pride é uma canção sempre presente nos shows do U2.
 
 
Além de "Pride", "MLK", canção que fecha o álbum, também é dedicada a Luther King. As duas músicas juntamente com a instrumental "4th Of July" e "Elvis Presley And America" mostram uma tentativa de mudança de eixo da banda, saindo das fronteiras europeias para refletir também sobre os Estados Unidos e o peso da cultura e da política americana. No entanto, com exceção de "Pride", as demais canções não estão entre os melhores momentos do disco, ainda que haja boas intenções aqui e ali, como a tentativa de Eno de gravar Adam Clayton e The Edge improvisando algumas ideias que resultou em "4th Of July". A gravação foi feita sem que o baixista e o guitarrista soubessem e acabou entrando no álbum. "Elvis Presley And America" também tem todo o estilo de uma jam session que talvez precisasse ser mais bem trabalhada.
 
O melhor de The Unforgettable Fire está mesmo na primeira metade do álbum. A música de abertura, "A Sort Of Homecoming", mostra imediatamente a mudança de som que o U2 queria para si ao se juntar com Eno e Lanois. A bateria é mais sutil, a guitarra não é tão proeminente e a letra de Bono Vox abre mão de ter um refrão forte para retratar imagens e a narrativa nesta experiência de volta para casa.

Seguida de "Pride" vem "Wire", música em que Bono tenta transmitir sua ambiguidade em relação às drogas: “Não sou nenhum narcótico/Eu lhe dou esperança/Aqui está a corda/Aqui está a corda/Agora balance nela”.

Após "Wire", vem a bonita faixa título, outra canção que é um exemplo do som mais atmosférico que a banda buscava com Eno. A música é uma verdadeira viagem emocional que ganha um som mais rico e sinfônico capitaneado pelo arranjo de cordas do músico irlandês Noel Kelahan. Apesar da inspiração vinda da já citada exposição sobre as vítimas da bomba atômica jogada em Hiroshima, a letra não faz qualquer referência direta à guerra nuclear e fala sobre sobre uma viagem a Tóquio.

Também se destaca no álbum a boa, mas já esquecida no tempo "Indian Summer Sky". Tal qual "Pride", esta é uma canção mais previsível, em que o U2 soa um pouco como o álbum anterior. Além de "Bad", uma das músicas favoritas dos fãs e de Eno, que trabalhou para criar nela uma atmosfera mais intensa que combina com a letra relativamente aberta, especialmente no fim da canção, que fala sobre a heroína e a perda de pessoas queridas por causa da droga.

Sucesso de Crítica

The Unforgettable Fire recebeu muitas críticas positivas quando do seu lançamento. Na época foi ressaltada como a parceria de Eno e Lanois com o U2 desconstruiu e revigorou o quarteto irlandês, trazendo novas texturas e camadas para o seu som, gerando um álbum que não é cheio de hits, mas cheio de ideias e temas.

O U2 tinha realizado o seu desejo de mudar, mas seguia em constante evolução. Havia no álbum e na parceria com Eno e Lanois boas ideias que ainda encontrariam o seu auge anos depois em The Joshua Tree e Acthung Baby, dois dos discos mais bem sucedidos artística e comercialmente do grupo e que o fariam mudar completamente de patamar na indústria e na história da música. E a semente dessa transformação foi plantada em The Unforgettable Fire.
 

Marcelo Alves

Acredita que o bom rock and roll consiste em dois elementos: algumas ideias na cabeça e guitarras no amplificador. Fã de cinema e do rock nas suas mais variadas vertentes, já cobriu três edições do Rock in Rio e uma do Monsters of Rock. Desde 2014, faz colaborações para o site "Rock on Board". Já trabalhou em veículos como os jornais "O Globo" e "O Fluminense". Twitter: @marceloalves007

1 Comentários

  1. Gostei bastante. Soube abordar todos os fatos mais relevantes sobre uma das maiores bandas de pop rock do mundo. Show

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