No entanto, no início da década de 1980, o sonho americano estava em crise. E talvez nunca mais tenha deixado esta condição. Naquela época, os Estados Unidos haviam saído de uma derrota na Guerra do Vietnã há menos de uma década e a crise do petróleo, em 1979, trouxe inflação e uma taxa de desemprego que chegou a 10,8%, o que não acontecia desde a Grande Depressão, e quase atrapalharam a reeleição do republicano Ronald Reagan à Casa Branca em 1984. E um dos artistas que souberam captar muito bem o espírito desse tempo foi Bruce Springsteen e seu 'Born in the U.S.A.'.
Naquela época,
Springsteen já era um cantor conhecido por sucessos como “Thunder Road”, “Badlands”
e “Hungry Heart”, mas o álbum lançado em 4 de junho de 1984 e que agora
completa 40 anos furou completamente a bolha do seu público habitual. Com Born
in the USA, o cantor nascido em Nova Jersey e então com 34 anos, virou uma
estrela com status mundial. E é curioso que isso tenha vindo com um disco que
falava tanto sobre uma realidade local. Talvez tenha sido porque temas como
desemprego, inflação e um estado de espírito de quem estava vendo a sua vida se
esvair sem ter conquistado nada relevante, sejam sentimentos comuns entre os
povos. Ou talvez tenha sido menos pelas letras e mais pelos matadores arranjos
e melodias do álbum sobre o qual era impossível ser indiferente naquela época.
E ainda é até hoje.
Esse espírito “para cima” e o
refrão forte e direto de “Born in the U.S.A.”, aliás, talvez tenha sido
responsável por um grande delírio coletivo que ainda perdura. A ideia de que o
álbum é patriótico. Um erro cometido até por Reagan, que em sua campanha para a
reeleição em 1984 usou a música para dizer que “o futuro da América está em mil
sonhos dentro de nossos corações. Está na mensagem de esperança nas
canções de um homem que tantos jovens americanos admiram: o próprio Bruce
Springsteen de Nova Jersey. Ajudar você a realizar esses sonhos é o objetivo
deste meu trabalho”. Em resposta a fala de Reagan, Springsteen questionou
durante um show da sua turnê se o presidente havia realmente ouvido a música. O mesmo erro foi cometido pelos também republicanos Bob Dole, em 1996, e
Pat Buchanan, em 2000. Além de Donald Trump, que também quis usar a música como
um hino nacionalista em sua campanha presidencial de 2016. Todos foram rechaçados
por Springsteen.
Não é preciso mais do que uma análise superficial da faixa-título
para entender que “Born in the U.S.A” não tem nada de patriótica. A faixa-título
do álbum conta a história de um homem abandonado pelo Estado, que nasce numa
cidade pequena, se envolve em confusões na cidade natal e é mandado para a
guerra do Vietnã, sendo forçado a matar pessoas que sequer conhecia só porque
eram de uma etnia diferente da sua. Ao retornar para casa, este homem está sem
rumo e trabalhando em subempregos enquanto seu melhor amigo morreu em Saigon. “Debaixo
da sombra da prisão/Ou perto das chamas de gás da refinaria/Estou há dez anos
sem rumo/Nada para fazer, nenhum lugar para ir”. Nascer nos Estados Unidos não
significava prosperar com trabalho árduo, mas enfrentar desemprego, aperto econômico
e ter que lutar muito para colocar comida na mesa da família.
O fim da inocência
Born in the USA não nasceu
naquele período de composição e registro do álbum entre 1982 e 1984. As ideias
contidas no disco começaram a ganhar forma no álbum anterior de Springsteen,
Nebraska (1982). Canções como “Atlantic City” e “Highway Patrolman” já
refletiam sobre o desemprego e a dificuldade de prosperar na América, o que
levava o homem comum a eventualmente enveredar para a criminalidade. Um trecho
da letra de “Atlantic City” diz, em tradução livre, que “Agora eu tenho
procurado por um emprego, mas é difícil de encontrar/Por aqui existem apenas
vencedores e perdedores, e não seja pego no lado errado dessa linha/Bem, eu estou
cansado de sair perdendo no final/Então, querida, noite passada conheci esse
cara e eu irei fazer um pequeno favor para ele”.
A partir de Nebraska, o cantor
começou a ensaiar umas mudanças de temas em suas letras. Não que as
preocupações sociais não estivessem presentes nos cinco álbuns anteriores, mas
agora os jovens românticos que viviam entusiasticamente a vida pessoal e
profissional, davam mais espaço às preocupações dos homens na faixa dos 30 anos, que precisavam trabalhar para sustentar a família enquanto enfrentam a recessão
econômica. De “Born to Run”, sucesso de 1975 sobre um jovem que quer fugir do
ritmo louco e suicida do sonho americano para viver e experimentar a vida
intensamente, a “Born in the U.S.A.”, o sonho americano foi se despedaçando.
A visão de Springsteen, no entanto, não é niilista. Apesar
de suas melodias vívidas, o álbum Born in the U.S.A é triste e sério e mostra
alguém que sabe se mostrar enfurecido com o declínio do padrão de vida da
classe trabalhadora, apesar de amar o próprio país.
Algumas das faixas de Born in
the U.S.A começaram a ser gravadas em janeiro de 1982, mostrando o quão Springsteen
estava prolífico e como o álbum dialoga fortemente com Nebraska, lançado em setembro
de 1982. O álbum só foi finalizado em março de 1984 no estúdio Power Station,
em Nova York. Acompanhando Springsteen estava a inigualável E Street Band, que
toca com o cantor até hoje. “Born in the U.S.A” é daqueles raros álbuns que
parecem bons do início ao fim, ainda que isso seja extremamente subjetivo.
O tema do álbum é claramente o
estrangulamento do trabalhador médio estadunidense. Além da faixa-título, “Darlington
County”, “Working on the Highway”, “Downbound Train” falam de alguma forma ou
de outra sobre a recessão e a falta de perspectivas de uma vida melhor. “My Hometown”,
que fecha o álbum, é sobre o desemprego e as transformações de uma América pós-industrial.
“Glory Days”, por sua vez, é uma canção nostálgica, que
fala sobre personagens que viveram um passado glorioso, o que não deixa de ser
uma metáfora sobre o desejo de uma vida melhor ou de voltar ao tempo em que se
acreditava no sonho americano. Já “Dancing in The Dark” é uma música sobre
alguém com um desejo urgente de mudança.
Em contraste com o clima do álbum, temos “No Surrender”, que mostra um Springsteen mais otimista e crente na força das pessoas e na capacidade delas de mudança. Completam o álbum a romântica “I´m on Fire”, “I´m Going Down”, sobre um relacionamento despedaçado, “Cover Me”, que foi originalmente escrita para Donna Summer, mas Springsteen acabou gravando - porque seu empresário, Jon Landau, viu nela um potencial hit -, e “Bobby Jean”.
“Bobby Jean”, aliás, é uma canção curiosa. É uma história
de amor inspirada na amizade de Springsteen com o guitarrista Steve Van Zandt,
que havia deixado a E Street Band e iniciado uma carreira-solo após desavenças
com o cantor, de quem é amigo desde os anos 1970. O que foi confirmado pelo próprio
guitarrista em sua autobiografia, “Unrequited Infatuations: A Memoir”, lançada
em 2021. Segundo Van Zandt, esta foi uma das três únicas brigas que teve com
Springsteen em tantas décadas de amizade.
Sucesso mundial
“Born in the U.S.A” é até hoje considerado um dos discos
mais importantes da carreira de Springsteen. O álbum foi definitivamente um
ponto de virada para o cantor, que chegou até a ficar incomodado com o status de
celebridade mundial que ganhou. O disco vendeu mais de 30 milhões de cópias no
mundo inteiro e frequentemente aparece em listas de melhores de todos os tempos
de publicações especializadas.
Springsteen frequentemente inclui canções de “Born in the U.S.A” em suas turnês. Em 2013, em sua primeira e até agora única apresentação no Rock in Rio do Rio de Janeiro, o público carioca teve o privilégio de ouvir o álbum ao vivo e na íntegra no meio de um show de mais de três horas.
No fim, a mensagem de “Born in the U.S.A.” permanece terrivelmente atual. Num mundo que frequentemente enfrenta crises econômicas, desemprego, inflação e falta de esperança de dias melhores, não há povo que não encontre eco nas letras e na voz de Springsteen.