Há 40 anos, Bruce Springsteen cantava o fim do sonho americano em 'Born in the U.S.A.'

 
Uma das marcas da identidade estadunidense é a ideia do sonho americano. O conceito popularizado pelo historiador James Truslow Adams durante os anos 1930, mas que tem raízes na declaração de independência dos Estados Unidos, consiste no ideal de que todos os homens são criados iguais e têm o inalienável direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. É por isso que a ideia de que se você se esforçar poderá sair da extrema pobreza para a extrema riqueza é tão enraizada e reproduzida em centenas de filmes, séries e músicas do país.

 

No entanto, no início da década de 1980, o sonho americano estava em crise. E talvez nunca mais tenha deixado esta condição. Naquela época, os Estados Unidos haviam saído de uma derrota na Guerra do Vietnã há menos de uma década e a crise do petróleo, em 1979, trouxe inflação e uma taxa de desemprego que chegou a 10,8%, o que não acontecia desde a Grande Depressão, e quase atrapalharam a reeleição do republicano Ronald Reagan à Casa Branca em 1984. E um dos artistas que souberam captar muito bem o espírito desse tempo foi Bruce Springsteen e seu 'Born in the U.S.A.'.

 

Naquela época, Springsteen já era um cantor conhecido por sucessos como “Thunder Road”, “Badlands” e “Hungry Heart”, mas o álbum lançado em 4 de junho de 1984 e que agora completa 40 anos furou completamente a bolha do seu público habitual. Com Born in the USA, o cantor nascido em Nova Jersey e então com 34 anos, virou uma estrela com status mundial. E é curioso que isso tenha vindo com um disco que falava tanto sobre uma realidade local. Talvez tenha sido porque temas como desemprego, inflação e um estado de espírito de quem estava vendo a sua vida se esvair sem ter conquistado nada relevante, sejam sentimentos comuns entre os povos. Ou talvez tenha sido menos pelas letras e mais pelos matadores arranjos e melodias do álbum sobre o qual era impossível ser indiferente naquela época. E ainda é até hoje. 

 

Esse espírito “para cima” e o refrão forte e direto de “Born in the U.S.A.”, aliás, talvez tenha sido responsável por um grande delírio coletivo que ainda perdura. A ideia de que o álbum é patriótico. Um erro cometido até por Reagan, que em sua campanha para a reeleição em 1984 usou a música para dizer que “o futuro da América está em mil sonhos dentro de nossos corações. Está na mensagem de esperança nas canções de um homem que tantos jovens americanos admiram: o próprio Bruce Springsteen de Nova Jersey. Ajudar você a realizar esses sonhos é o objetivo deste meu trabalho”. Em resposta a fala de Reagan, Springsteen questionou durante um show da sua turnê se o presidente havia realmente ouvido a música. O mesmo erro foi cometido pelos também republicanos Bob Dole, em 1996, e Pat Buchanan, em 2000. Além de Donald Trump, que também quis usar a música como um hino nacionalista em sua campanha presidencial de 2016. Todos foram rechaçados por Springsteen.

 

Não é preciso mais do que uma análise superficial da faixa-título para entender que “Born in the U.S.A” não tem nada de patriótica. A faixa-título do álbum conta a história de um homem abandonado pelo Estado, que nasce numa cidade pequena, se envolve em confusões na cidade natal e é mandado para a guerra do Vietnã, sendo forçado a matar pessoas que sequer conhecia só porque eram de uma etnia diferente da sua. Ao retornar para casa, este homem está sem rumo e trabalhando em subempregos enquanto seu melhor amigo morreu em Saigon. “Debaixo da sombra da prisão/Ou perto das chamas de gás da refinaria/Estou há dez anos sem rumo/Nada para fazer, nenhum lugar para ir”. Nascer nos Estados Unidos não significava prosperar com trabalho árduo, mas enfrentar desemprego, aperto econômico e ter que lutar muito para colocar comida na mesa da família.



A canção é matadora, os arranjos são incríveis e grudam na cabeça de quem ouve. E a letra tem a denúncia que parece ainda mais urgente na voz áspera de Springsteen. A faixa, portanto, não era um canto patriótico e o seu refrão contém uma fina ironia só percebida quando se entende o resto da letra. O que, como os exemplos acima mostraram, parece não ter sido percebido sequer por nativos na língua inglesa.

O fim da inocência

 

Born in the USA não nasceu naquele período de composição e registro do álbum entre 1982 e 1984. As ideias contidas no disco começaram a ganhar forma no álbum anterior de Springsteen, Nebraska (1982). Canções como “Atlantic City” e “Highway Patrolman” já refletiam sobre o desemprego e a dificuldade de prosperar na América, o que levava o homem comum a eventualmente enveredar para a criminalidade. Um trecho da letra de “Atlantic City” diz, em tradução livre, que “Agora eu tenho procurado por um emprego, mas é difícil de encontrar/Por aqui existem apenas vencedores e perdedores, e não seja pego no lado errado dessa linha/Bem, eu estou cansado de sair perdendo no final/Então, querida, noite passada conheci esse cara e eu irei fazer um pequeno favor para ele”.

 

A partir de Nebraska, o cantor começou a ensaiar umas mudanças de temas em suas letras. Não que as preocupações sociais não estivessem presentes nos cinco álbuns anteriores, mas agora os jovens românticos que viviam entusiasticamente a vida pessoal e profissional, davam mais espaço às preocupações dos homens na faixa dos 30 anos, que precisavam trabalhar para sustentar a família enquanto enfrentam a recessão econômica. De “Born to Run”, sucesso de 1975 sobre um jovem que quer fugir do ritmo louco e suicida do sonho americano para viver e experimentar a vida intensamente, a “Born in the U.S.A.”, o sonho americano foi se despedaçando.

 

A visão de Springsteen, no entanto, não é niilista. Apesar de suas melodias vívidas, o álbum Born in the U.S.A é triste e sério e mostra alguém que sabe se mostrar enfurecido com o declínio do padrão de vida da classe trabalhadora, apesar de amar o próprio país.

 

Algumas das faixas de Born in the U.S.A começaram a ser gravadas em janeiro de 1982, mostrando o quão Springsteen estava prolífico e como o álbum dialoga fortemente com Nebraska, lançado em setembro de 1982. O álbum só foi finalizado em março de 1984 no estúdio Power Station, em Nova York. Acompanhando Springsteen estava a inigualável E Street Band, que toca com o cantor até hoje. “Born in the U.S.A” é daqueles raros álbuns que parecem bons do início ao fim, ainda que isso seja extremamente subjetivo. 

 

O tema do álbum é claramente o estrangulamento do trabalhador médio estadunidense. Além da faixa-título, “Darlington County”, “Working on the Highway”, “Downbound Train” falam de alguma forma ou de outra sobre a recessão e a falta de perspectivas de uma vida melhor. “My Hometown”, que fecha o álbum, é sobre o desemprego e as transformações de uma América pós-industrial.

 

“Glory Days”, por sua vez, é uma canção nostálgica, que fala sobre personagens que viveram um passado glorioso, o que não deixa de ser uma metáfora sobre o desejo de uma vida melhor ou de voltar ao tempo em que se acreditava no sonho americano. Já “Dancing in The Dark” é uma música sobre alguém com um desejo urgente de mudança.


 

Em contraste com o clima do álbum, temos “No Surrender”, que mostra um Springsteen mais otimista e crente na força das pessoas e na capacidade delas de mudança. Completam o álbum a romântica “I´m on Fire”, “I´m Going Down”, sobre um relacionamento despedaçado, “Cover Me”, que foi originalmente escrita para Donna Summer, mas Springsteen acabou gravando - porque seu empresário, Jon Landau, viu nela um potencial hit -, e “Bobby Jean”.

 

“Bobby Jean”, aliás, é uma canção curiosa. É uma história de amor inspirada na amizade de Springsteen com o guitarrista Steve Van Zandt, que havia deixado a E Street Band e iniciado uma carreira-solo após desavenças com o cantor, de quem é amigo desde os anos 1970. O que foi confirmado pelo próprio guitarrista em sua autobiografia, “Unrequited Infatuations: A Memoir”, lançada em 2021. Segundo Van Zandt, esta foi uma das três únicas brigas que teve com Springsteen em tantas décadas de amizade.

 

Sucesso mundial

 

“Born in the U.S.A” é até hoje considerado um dos discos mais importantes da carreira de Springsteen. O álbum foi definitivamente um ponto de virada para o cantor, que chegou até a ficar incomodado com o status de celebridade mundial que ganhou. O disco vendeu mais de 30 milhões de cópias no mundo inteiro e frequentemente aparece em listas de melhores de todos os tempos de publicações especializadas.

 

Springsteen frequentemente inclui canções de “Born in the U.S.A” em suas turnês. Em 2013, em sua primeira e até agora única apresentação no Rock in Rio do Rio de Janeiro, o público carioca teve o privilégio de ouvir o álbum ao vivo e na íntegra no meio de um show de mais de três horas. 


No fim, a mensagem de “Born in the U.S.A.” permanece terrivelmente atual. Num mundo que frequentemente enfrenta crises econômicas, desemprego, inflação e falta de esperança de dias melhores, não há povo que não encontre eco nas letras e na voz de Springsteen.


Marcelo Alves

Acredita que o bom rock and roll consiste em dois elementos: algumas ideias na cabeça e guitarras no amplificador. Fã de cinema e do rock nas suas mais variadas vertentes, já cobriu três edições do Rock in Rio e uma do Monsters of Rock. Desde 2014, faz colaborações para o site "Rock on Board". Já trabalhou em veículos como os jornais "O Globo" e "O Fluminense". Twitter: @marceloalves007

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