Bruce Dickinson
The Mandrake Project
⭐⭐⭐⭐✰4/5
Por Marcelo Alves
Numa
era em que a arte parece cada vez mais líquida dada a superficialidade com que
muitas vezes é tratada na velocidade de um vídeo do Tik Tok e, consequentemente, descartada nos sabores do algoritmo de redes sociais, álbuns conceituais ainda
são relevantes? Ainda há espaço para criar um disco que possui um propósito
maior coletivamente do que em faixas isoladas? Para alguns artistas consagrados
em seus respectivos gêneros a resposta a estas duas perguntas é sim. Entre
eles está o veterano cantor de heavy metal Bruce Dickinson, que aproveitou os espaços vazios na agenda do Iron Maiden nos últimos anos para trabalhar no seu projeto
solo mais ambicioso e multidimensional.
Sétimo
álbum solo de sua carreira e o primeiro em quase duas décadas, “The Mandrake
Project” é um álbum conceitual com uma história inédita criada pelo cantor e
que está sendo lançado junto com uma graphic novel em três volumes (o primeiro
lançado em janeiro) que explora e expande o universo criado por Dickinson a
partir do confronto de duas forças opostas: o Dr. Necrópolis, o protagonista da
história, e o professor Lazarus. A história original foi criada pelo cantor e nos quadrinhos foi roteirizada pelo britânico Tony Lee – que já trabalhou na Marvel com Homem-Aranha e X-Men, além de projetos na DC e Star Trek – e
ilustrada por Staz Johnson. O enredo de The Mandrake Project é descrito como
sombrio. Uma história sobre poder, abuso, luta por identidade e um embate entre ciência e o
ocultismo.
Para
este novo álbum, Dickinson trouxe de volta a mesma banda com quem gravou o seu
último trabalho, Tyranny of Souls (2005). Além do velho companheiro de
composições, o guitarrista Roy Z, com quem assina todas as faixas de “The
Mandrake Project”, fazem parte do projeto o baterista Dave Moreno e o
tecladista Maestro Mistheria.
Musicalmente,
porém, o álbum é mais rico do que Tyranny of Souls. Ao longo de suas dez
faixas encontram-se facilmente ecos não apenas do disco anterior, mas também de Accident of Birth (1997) e The Chemical Wedding (1998). Isso se dá
porque “The Mandrake Project” é claramente mais diverso musicalmente em comparação ao que Dickinson mostrou no trabalho anterior. Talvez pela
maturidade musical ou pelos anos em que o projeto levou para ser concebido.
Segundo o cantor, ele vem trabalhando desde 2014 nesta história musical.
“Eu
não tinha a necessidade de reproduzir as coisas que eu fiz no passado porque,
bem, eu tenho muito orgulho de tudo, mas algumas coisas em particular.
“Chemical Wedding” foi obviamente um ponto alto. “Tyranny of Souls” foi um álbum
em que não sabíamos onde colocá-lo, pois estive muito ocupado com o (Iron)
Maiden, o que está tudo bem. Agora eu tive algum espaço e de volta a 2014 tive
algumas ideias e as apresentei. A ideia é de que haveria uma história
atravessando o álbum. Depois, a história passaria a atravessar os quadrinhos em
um projeto de três anos, algo separado do álbum, mas o álbum em si se tornou
uma história musical e não uma história literal”, disse Dickinson, em coletiva
de divulgação do disco.
Nova
versão de música de “Book of Souls”
No
novo álbum, Dickinson está mais do que nunca exercitando o seu lado trovador e
contador de histórias. Quem conhece os tons dramáticos e teatrais que o cantor
dá nos shows do Iron Maiden em canções como “Fear of the Dark”, “Paschendale”
ou “Rime of the Ancient Mariner” vai encontrar alguma semelhança em “Shadow of
the Gods”, “Rain on the Graves” e “Afterglow of Ragnarok”. Contudo, as
semelhanças param por aí. Musicalmente, o álbum é bem diferente do que Bruce
faz no Iron Maiden. Aqui não se vê as famosas cavalgadas de baixo de Steve
Harris ou as características assinaturas dos três guitarristas nas músicas,
pois Roy Z faz o estilo mais pesado e direto em seus solos e menos dado às melodias
de um metal mais progressivo que Adrian Smith ou Dave Murray impõem em muitas
canções do Maiden.
Quer
dizer, ouvidos mais atentos vão reconhecer outra semelhança direta com o
Maiden. A faixa “Eternity has Failed” é basicamente uma evolução de “If
Eternity Should Fail” escrita por Dickinson e presente no álbum Book of Souls (2015). Além da mudança na condição da eternidade, afinal, aparentemente de
2015 para 2024, ela de fato falhou, a música tem uma letra diferente em alguns
trechos e uns teclados substituindo algumas guitarras do Maiden. Contudo, ela
continua pesada e a cara do seu criador. É também na canção lançada em 2015 no
álbum do Iron Maiden que conhecemos a figura do Doutor Necrópolis, confirmando
que Dickinson trabalhava há muito tempo nesta história. No final da canção de The
Book of Souls, Necrópolis se apresenta como alguém que surgiu dos mortos, é o
ceifeiro da carne humana e irá sugar as vidas ao redor do leito dele. Em The Mandrake Project, sua apresentação é mais misteriosa. Ele apenas diz quem é e
avisa que surgiu dos mortos.
“Quando
estou no Iron Maiden tenho consciência que há um estilo a respeitar, o legado,
a história, tudo. Já o que eu tenho que respeitar no meu trabalho solo é a
autenticidade da voz, em termos da música e a forma como ela é apresentada. Por
exemplo, uma canção como “Ressurrection Men” soa como o início de um filme do
(diretor) Quentin Tarantino ou do (Ennio) Morricone (famoso compositor de
trilhas sonoras) e as pessoas percebem isso. Isso é um exemplo. Posso
pegar um pouco da vibração do Spaghetti Western (gênero cinematográfico), ir para uma coisa mega Geezer
Butler (baixista do Black Sabbath) que Roy inventou e no meio disso fazer uma
mistura. É algo que eu posso fazer no meu álbum solo”, afirmou.
Além
do fato de realmente soar vagamente como uma trilha sonora de um Spaghetti
Western criada por Morricone, “Ressurrection Men” tem ainda uma deliciosa guitarra
rítmica na sua abertura, quase um som de flamenco, que depois passa para um
momento bem pesado comandado por Roy Z. Ela é a quarta faixa do álbum. Até
chegar nela, o ouvinte já passou pelo tom agressivo, épico e melancólico de
contador de histórias de Dickinson em “Afterglow of Ragnarok”, pelo hard rock
de “Many Doors to Hell” e pela encorpada e tomada por um dramático momento de
teclado de “Rain on the Graves”, cuja letra Dickinson escreveu depois de uma
visita ao túmulo do poeta romântico inglês William Wordsworth.
Outro
poeta inglês, William Blake, é uma influência do álbum, e tem trechos de suas
obras abrindo os dois videoclipes lançados por Dickinson até aqui, justamente
para “Afterglow of Ragnarok”, que expande de forma transmidiática os quadrinhos
de “The Mandrake Project”, e “Rain on the graves”.
“Toda
vez que você escreve um álbum está gerando algo com personalidade, algo com um
pouco de uma alma individual. Para mim, é uma questão de fazer canções
diferentes sem forçar muito, autênticas, mas sem contar mentiras ou inventar que
você é algo que não está na música. O storytelling na música tem que ser
representado pela música. Há algumas boas histórias neste álbum e é por isso
que toda faixa é ligeiramente diferente em termos de interpretação e estilo”,
disse o cantor.
O
álbum continua com “Fingers in the Wounds”, uma das melhores canções do disco
com todo o seu estilo sinfônico acompanhada por um piano, a interpretação dramática
de Dickinson e um refrão grandioso, daqueles que o cantor sempre soube compor
tanto em sua carreira solo quanto em sua participação no Iron Maiden.
“Mistress
of Mercy” tem uma sonoridade que remete um pouco aos bons momentos de Skunkworks (1996) enquanto “Face in the Mirror” tem uma bela guitarra acústica e encontra
paralelos em “Man of Sorrow” e “Taking the Queen”, do álbum Accident of Birth (1997).
O jeito
teatral de cantar de Dickinson retorna em “Shadow of the Gods”. Segunda música
mais longa do álbum, com 7:02 minutos, esta é outra música que vai aproximar os
trabalhos do Dickinson do Iron Maiden a carreira solo. É curioso que
Dickinson começa a faixa quase como um crooner e no refrão solta a voz numa
interpretação intensa e contundente, fazendo a música sair do que parecia ser
uma balada para uma faixa pesada e evoluindo num metal progressivo bombástico.
Aqui também o cantor fala sobre a necromancia na letra, prática de magia que supostamente
envolve uma arte de comunicação com os mortos. Tudo para terminar o disco com “Sonata
(Immortal Beloved)”, a canção mais longa do álbum, com nove minutos, em cujo refrão
o cantor clama por salvação (“Save me now/Save me now/ Save me now/Save me from
this pain”).
Os grandes méritos de The Mandrake Project estão na versatilidade vocal com que Dickinson interpreta as suas faixas e na forma como ele alarga os limites da fórmula do Iron Maiden indo para além das fronteiras estabelecidas pela banda e reconhecidas pelo próprio cantor em entrevista. Há canções de praticamente todos os estilos sobre os quais o vocalista já se arriscou. E é um deleite ver que no álbum elas são muito bem executadas. Se ao vivo for igual, os shows que o cantor pretende fazer no Brasil prometem ser muito bons.