Gigantes da música brasileira marcam segundo dia do Rio Montreux Jazz

Foto: Rogerio Von Kruger
 
Nomes gigantescos da música brasileira, João Bosco e Ney Matogrosso se apresentaram na segunda noite do Rio Mountreux Jazz Festival de 2023. cada um contou com um setlist que combinava homenagens aos headliners da noite e uma oportunidade para conferir medalhões de perto, numa configuração mais intimista do que se possa imaginar, ainda que com resultados diferentes. 

Com as variações e problemas climáticos dos últimos dias, a noite da quinta-feira foi marcada também pelo intenso trabalho da equipe do evento, nos bastidores, para realizar mesmo com a intensa chuva do final do feriado. Afetou a chegada no espaço dos shows, pois a subida dos bondes, por riscos de raios, forçando a uma longa espera do público (incluindo este redator que vos escreve). O temporal também afetou até as atrações principais, pois tanta água gerou até infiltrações no palco Villa-Lobos, no anfiteatro do parque da Urca. Com este problema, ambos os shows tiveram atrasos de pelo menos uma hora, porém contaram com luz e som do dignos da apresentação de ambos artistas, felizmente com os problemas sanados. 

Com João Bosco e convidados no palco, "Incompatibilidade de gênios", reuniu ao cantor e violonista a cantora Vanessa Moreno, o violoncelista Jaques Morelenbaum e o acordeonista Mestrinho. Com som cristalino e a proximidade que o palco Villa-Lobos permite, a sensibilidade e esmero de cada um dos músicos estavam a mostra para quem quisesse apreciar o encontro. E motivos para isto não faltaram. 

João Bosco e Vanessa Moreno se alternavam nos vocais, ou cantavam juntos em lindas harmonias, dignas de arrancar lágrimas, como em "De frente pro Crime", "Corsário" e "Ronco da Cuíca", esta apenas com os dois no palco. 

Mestrinho, que hoje acompanha Gilberto Gil, além de manter sua carreira solo, brilhou com seu acordeon tanto pela habilidade, quanto pela unidade musical com os presentes no palco. O sergipano Mandou uma versão instrumental de "Bala Com Bala", homenageando Elis Regina e tocou a sensacional "Sinhá" com o homenageado da noite.

Jaques Morelenbaum acompanhou passagens, interpretou melodias e temas e deu suporte ao violão das canções. Sozinho no palco, tocou "Mestre-Sala dos Mares" com seus versos , de autoria do saudoso Aldir Blanc, cantados pelo público. Pensar que a letra, sobre o almirante negro, João Cândido, teve que ser alterada para poder ser lançada em meio a ditadura militar brasileira. Voltando ao violoncelista, este tocou, em um último dueto com João Bosco, "Caça à Raposa". Em seguida ,"O Bêbado E O Equilibrista", já com a formação completa, e numa bela performance, encerrou a apresentação.

Veterano de apresentações na noite brasileira da edição suíça Mountreux Jazz Festival, celebrado por Marco Mazzola, produtor musical e diretor da edição carioca do evento, no começo e no término da apresentação, João Bosco brilhou, do alto de seus 77 anos, por todo o tempo no palco. O belo trabalho do homenageado e dos convidados, havia uma sinergia, um encantamento que poucas vezes vi numa apresentação ao vivo. Difícil até de explicar com palavras a densidade do encontro, mas, se me perguntar, saí do anfiteatro quase levitando.

Ainda sobre os problemas com a chuva, não pude conferir as atrações do palco Village: Maíra Freitas & Jazz das Minas e a blueswoman Nanda Moura. E, como citado, a apresentação de Ney Matogrosso se iniciou apenas a 1:00 da manhã, em vez das 00:00h, como previsto. O influente artista, com todo o seu profissionalismo, chegou ao palco como se nada tivesse acontecido. De sorriso largo e dançando, abriu o show com "Rua da Passagem (Trânsito)", "Roendo as Unhas" e, de Chico Buarque, "Tua Cantiga". 

Após uma breve pausa, o cantor chamou ao palco Ana Cañas,  primeira convidada do set. Juntos, cantaram "Como 2 e 2" de Caetano Veloso para Roberto Carlos e foi na canção que o andamento da apresentação caiu um pouco, não em termos rítmicos, mas de empolgação mesmo, ainda que o solo de guitarra, caprichado no tremolo e no reverb, tenha se destacado. Em seguida, a cantora interpretou, com a banda completa de Ney Matogrosso, duas parcerias de Fagner e Chico Buarque: "Postal de Amor" e "Ponta do Lápis". Nas duas interpretou bem alguns maneirismos do cantor homenageado, além das composições permitirem uma abordagem mais animada. Com Felipe Catto nos vocais, "Mulher Barriguda", do disco de estréia do Secos & Molhados e "Corista de Rock", de Rita Lee e Roberto de Carvalho, caíram bem com a interpretação roqueira da cantora. "Pavão Mysterioso", com Ney Matogrosso de volta ao palco foi um dos momentos mais legais da apresentação, tanto pela execução do instrumental pela excelente banda do cantor, como pelos vocais da dupla e a bela projeção no fundo do palco. 

Com as cantoras convidadas cantando faixas do repertório padrão do inacreditavelmente octagenareo, a próxima a subir ao palco foi Duda Brack. Após um beijo na boca do cantor, a também atriz mandou "Jardins da Babilônia", e fez questão de percorrer todo o palco. Cantou "Yolanda", também de Chico Buarque e em dueto com o homenageado da apresentação, cantou a versão funk carioca de "O Último Dia". 

Liniker,  última das convidadas, foi recebida com empolgação antes pela platéia e cantou sozinha "O Beco" e "Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua". Soou um tanto deslocada, não por falta de habilidade, mas por alguns vícios vocais, que deixam a interpretação um pouco travada, até calculada. 

Após "Sangue Latino", que conta com  um andamento que o da versão original, de 1973, todas as cantoras se mantiveram no palco para os backing vocals de todas as músicas do final do set, que foram "Poema", "Ex-Amor" (de Martinho da Vila) e uma forte versão de "Homem Com H", animada e com a grande presença de palco de Ney Matogrosso em evidência. Com os pedidos de bis, e sem mais músicas ensaiadas, o cantor decidiu repetir "Roendo As Unhas", de Paulinho da Viola, após confidenciar que havia gostado muito de como a canção no começo do show.

Dividida entre show solo e e tributo, a apresentação teve alguns poréns na ordem das músicas, ou até na escolha das músicas, por terem seguido o repertório padrão do sul-] matogrossense, em vez de musicas específicas de sua enorme discografia. Performances bem-intencionadas, claro, mas que por vezes ressoaram mais com os fãs de algumas cantoras. Não chegou a ser ruim, mas um show completo de Ney Matogrosso tem um impacto diferente. Ainda assim, combinar apresentações de João Bosco Ney Matogrosso numa mesma noite foi um grande acerto da terceira edição do Rio Mountreux Jazz Festival. 

Zeone Martins

Redator, tradutor e músico. Coleciona discos e vive na casa de vários gatos. Ex-estudante de Letras na UFRJ. Tem passagens por várias bandas da região serrana e da capital fluminense.

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