A excelência de Hermeto Pascoal é destaque no Rio Montreux Jazz Festival

Foto: Marcos Hermes
 
A sexta-feira 13 de outubro, terceira noite do Rio Mountreux Jazz Festival, reuniu Hermeto Pascoal e uma apresentação conjunta de Elba Ramalho e Chico César. Sem o temporal da noite anterior, mas ainda em meio a chuva razoavelmente intensa, a noite seguiu sem maiores problemas. 

A primeira apresentação, do palco Village, foi do pianista sueco Anders Helmerson. Acompanhado pelo baterista Juan Mejia ( que focado na leitura ritimica, não tirava o olho das partituras nem por um segundo) e pelo baixista Simon Fagerstedt, o pianista usou e abusou de acordes dissonantes e tons diminutos, chamando atenção pelo arranjo bem amarrado de suas composições. 

O repertório do instrumentista também apresenta uma bem-vinda variação de climas, entre a melancolia e a euforia, ditados por suas passagens ao piano. Com o baixo preenchendo as bases junto as oitavas graves do piano, mas sem repeti-las, ou solando com muito bom gosto, o jazz do trio soou solto e dinâmico. Em boa parte do repertório, havia um quê de Yes, até de Genesis, mais na sequência de notas e acordes do que nos timbres em si, e a resposta veio até que rápido: Anders Helmerson possui um background no rock progressivo europeu, em especial do começo dos anos 80 época de seu disco de estréia, End Of Illusion. Décadas depois, veio para o Rio de Janeiro e gravou mais 5 álbuns. Vale a pena conferir o trabalho do sueco, que mandou agradecimentos em inglês e bom português.

Às 22:50, os integrantes da banda de apoio da próxima atração foram a frente do palco, munidos de tubos, e executaram uma levada percussiva, com batidas no chão. De sorrisos no rosto e prontos para uma apresentação que se confirmou incrível: André Marques (piano elétrico), Jota P (saxofone e flauta), Fábio Pascoal (Percussão), Ajurinã Zwarg (bateria) e seu pai, o lendário baixista Itiberê Zwarg antecederam o mago Hermeto Pascoal, que junto de um dos roadies, chegou ao palco já ovacionado.

Entre passagens atonais, mudanças de tom e harmonias complicadas, a banda não dava um segundo de trégua para a plateia. Alí se presenciava muito do melhor que o jazz latino tem para oferecer: música complexa, que requer anos de experiência no palco para ser tocada com tanta facilidade, além de intenso estudo, mas que não abre mão de ser dançante, não exige do ouvinte um diploma em Berkeley para aprecia-la. E, felizmente, o público presente no morro da Urca estava de braços (e ouvidos) abertos para a beleza do trabalho de Hermeto Pascoal. Vários sorrisos na plateia, em especial quando o multiinstrumentista, de trás de seu sintetizador, localizado no lado direito do palco, chamava a plateia para repetir suas inusitadas vocalizacões. Prontamente atendido, também abriu um sorriso em agradecimento.

Já com 87 anos, o alagoano passou tempo considerável sentado a beira do palco, pronto para voltar com solos ou interseções nas teclas. Fez a diferença até com uma, em contratempo, além de seu carisma. Com vários momentos de destaque dos instrumentistas de sua banda, durante as músicas ou isoladamente, a virtuose nunca se fez presente para massagear o ego dos músicos. Funcionou alí como meio para expressão, levando as músicas em diferentes direções por uma hora de apresentação. Com Fábio Pascoal (um dos filhos do maestro) no último momento solo do show, teve espaço até para um trecho tirar som de porquinhos de borracha presentes seu kit de percursão. 

Em clima flamenco última música, e com mais um trecho de interação com o público, o mago agradeceu a presença de todos, perguntou pelo 'papai', Ajurinã Zwarg, cuja esposa deu a luz dois dias antes da apresentação do grupo no festival. Também recebendo uma homenagem do produtor Marco Mazzola, e comemorando os 46 anos do primeiro show de Itiberê Zwarg junto com Hermeto Pascoal, todos deixaram o palco em clima de festa, mas não sem antes mostrar as partituras de duas músicas que escritas pelo maestro no hotel, na manhã do daquele mesmo dia 13. Sorte a nossa.

Em seguida, houve a apresentação de Dani Spielmann Choro Trio no palco Village, mas como a chuva apertou e muita gente seguiu no espaço do palco Villa-Lobos após o show de Hermeto Pascoal, continuei por alí para guardar um lugar próximo ao palco. Aproximadamente uma hora depois, já estava tudo certo para a próxima atração, o espetáculo "Viva Nordeste".

Com a SpokFrevo Orquestra a postos, o palco ficou pequeno para tanto som. A big band é de uma precisão incrível. Dirigida pelo maestro Spok e por Gilberto Pontes, o som se mostrou tão bem amarrado, que só as notas do naipe de metais já poderiam derrubar um muro, se assim os músicos quisessem. Abrindo a apresentação com um pout-pourri de frevos, poesia declamada por Spok e "Candeeiro Encantado" de Lenine, também cantado pelo maestro, o combo se preparou para a chegada de Chico César. O paraibano, trajando um belo manto vermelho, chegou ao palco gritando "Viva Paulo Freire", antes de cantar "Mama África", sucesso de 1995, amparado pelo som cheio da orquestra e mostrou estar com a voz em dia, cantando bem em diferentes regiões vocais. 

"Beradeiro", outra composição, do vocalista foi a próxima do setlist. Seguindo com "Dona da Minha Cabeça", e "Táxi Lunar" de Geraldo Azevedo, dois dos destaques do show, o paraibano deixou o palco, comentando a vinda de sua amiga, Elba Ramalho. Seguindo com as homenagens a música do nordeste, foi a vez de "Anunciação", de Alceu Valença, a cantora esbanjou simpatia com a plateia além da voz forte, característica. Numa das surpresas da noite, a SpokFrevo puxou o riff de "A Praieira", da Nação Zumbi e se saiu muito bem na inusitada versão.

Com Chico César de volta ao palco, a cantora comentou que naquela noite passava por uma febre forte, e ainda estava cantando as músicas um tom acima do que costuma apresentar em seu próprio show. Cantando em dueto até o final da apresentação, mal dava para perceber algum problema na voz da paraibana. Com vários casais dançando na pista do anfiteatro, talvez esta tenha sido a apresentação mais romântica do festival. 

Ao discutir qual música tocar no bis, o maestro Spok declarou que a banda poderia tocar até a manhã do dia seguinte, e não duvide, pela história do frevo como música da rua, junto ao choro, que o show pudesse durar mais algumas horas. Na madrugada de sábado, fica mais uma evidência do quanto o nordeste, sim, é uma potência artística e musical do Brasil, e quanto a música do sudeste e outras regiões, deve muito aos compositores e intérpretes baianos, cearenses, paraibanos, sergipanos, potiguares  alagoanos, piauienses e maranhenses.

Zeone Martins

Redator, tradutor e músico. Coleciona discos e vive na casa de vários gatos. Ex-estudante de Letras na UFRJ. Tem passagens por várias bandas da região serrana e da capital fluminense.

2 Comentários

  1. Excelente texto do Zeone Martins. Tão profundo e cheio de emoções, até consegui sentir todo a euforia dessa noite. Espetacular.

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    1. Muito obrigado mesmo pelo feedback. O festival foi incrível.

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