DAVID GILMOUR
Rattle That Lock
Columbia; 2015
Por Lucas Scaliza

David Gilmour finalmente saiu da toca! Ou melhor, do barco. Ele passa um bom tempo no Astoria, seu barco, que também é, vejam só, uma casa-estúdio flutuante no Tâmisa. E saiu de lÔ com um novo disco solo, Rattle That Lock, e uma turnê mundial que jÔ estÔ percorrendo a Europa, passarÔ pelo Brasil (serÔ a primeira vez dele na América do Sul) e pelo Estados Unidos. Não é só um novo disco de um roqueiro da velha guarda do progressivo. à um acontecimento.
Desde o fim da parceria entre Gilmour e Roger Waters, Gilmour tem levado mais tempo para colocar novas mĆŗsicas em nossas vidas. A Momentary Lapse of Reason, do Pink Floyd, Ć© de 1987. Levou sete anos para que gravassem o sucessor, The Division Bell (1994). DaĆ, mais 20 anos atĆ© que lanƧassem o derradeiro da banda, The Endless River [leia resenha AQUI]. No meio disso, ele fez um disco acĆŗstico e o ótimo On An Island (2006), seu terceiro disco solo, que marcou sua Ćŗltima turnĆŖ tambĆ©m. Pensando bem, tivemos anos privilegiados jĆ” que ele colocou dois discos inĆ©ditos na praƧa em menos de um ano.
Rattle That Lock, como o próprio Gilmour esclareceu em um programa de rÔdio da BBC, não é uma tentativa de criar novos sons, como (quase) sempre foi o caso com o Pink Floyd e todas aquelas experimentações com sintetizadores, teclados, pedais, timbres e etc. Ele queria ver se ainda conseguia fazer canções que funcionassem, que fossem boas. O resultado é que sim, ele é capaz de fazer boas músicas. Mais do que isso: Rattle That Lock é seu trabalho mais diversificado. Enquanto On An Island se manteve fiel a uma coesão musical que aproveitava os solos e fraseados bonitos e bem encaixados de Gilmour na guitarra em canções que, em geral, eram lentas, agora ele passeia por diferentes estilos.
Isso não deve afugentar os fãs de longa data do inglês. Afinal, o que foram os melhores anos do Pink Floyd se não um passeio por diversas estéticas: psicodélico, experimental, rock progressivo, rock conceitual e etc.? Rattle That Lock não é perfeito, mas atesta a musicalidade de seu compositor e sua versatilidade.
O disco comeƧa bem cedinho, antes do trem partir, com “5 A.M.”, uma peƧa instrumental. No primeiro plano, Gilmour sola com delicadeza uma Gibson Les Paul daquele jeito que jĆ” conhecemos de seus Ćŗltimos discos (solo e do Floyd), com frases bonitas e bends cheios de feeling, sua especialidade. No segundo e terceiros planos, um dedilhado de violĆ£o e uma orquestra preenchendo a harmonia. E entĆ£o o trem parte: Gilmour usa o jingle da SNCF (uma companhia francesa de trens) que anuncia chegadas de trens como principal tema da faixa-tĆtulo, “Rattle That Lock”. Se “5 A.M.” Ć© tranquila, para despertar, esta te convida a danƧar e a encarar o dia (“Let’s go do it”, ele canta). Um baixo bem melódico, uma guitarra bem aguda e soltinha, um refrĆ£o que nĆ£o demora para acontecer. Ć Roxy Music total, a banda de seu produtor e guitarrista nessa nova empreitada, Phil Manzanera. Ć radiofĆ“nica, desce fĆ”cil, tem suingue e dois solos que estĆ£o bem altos na mixagem final (e a bateria estĆ” bem comprimida, aliĆ”s). Uma mĆŗsica bacana que mostra um lado mais anos 80, mas nada tĆ£o especial ou marcante assim. Na versĆ£o deluxe do Ć”lbum a mĆŗsica tem um minuto e meio a mais de duração e o solo final de Gilmour estĆ” completo. Deveriam ter mantido essa versĆ£o.
“Faces of Stone” Ć© uma balada triste, com violĆ£o e compassos em 3/4 que acentuam o tom melancólico. Gilmour tenta ser dramĆ”tico em seu solo final para a faixa, mas acaba sendo mais cortante do que o tom geral da canção. Ainda assim, Ć© mais uma faixa surpreendente, de estilo que nĆ£o esperarĆamos estar presente em disco solo dele. “A Boat Lies Waiting” Ć© uma balada de piano de tom e sonoridades mais próximas de On An Island e uma letra terna, mas mortal. “Te balanƧa como um berƧo/ Te balanƧa pra valer/ VocĆŖ dormirĆ” feito um bebĆŖ/ Conforme te leva Ć s portas da Morte”, ele canta no trecho final. A mĆŗsica termina em fade out logo após o Ćŗltimo verso deixando uma impressĆ£o de reticĆŖncias, como se terminasse vaga, incompleta. O próprio diz que Ć© uma mĆŗsica que ficou muito tempo sendo trabalhada atĆ© se revelar e foi feita com o amigo e ex-companheiro de banda, Rick Wright (tecladista do Floyd, morto em 2008), em mente. “Dancing Righ In Front of Me” Ć© outra surpresa: uma acentuação a cada dois tempos conferindo mais um ritmo que convida a danƧar. A partir da segunda parte, os versos sĆ£o preenchidos por fills de uma guitarra blues. Assim como “Faces of Stone”, a faixa propƵem interpretaƧƵes um pouco diferentes dentro do mesmo andamento, cabendo um riff mais roqueiro e atĆ© uma passagem mais jazzista.
Assim que “In Any Tongue” comeƧou a pulsar, pensei que ouviria os versos “Hello, is there anybody in there?”, tal Ć© a semelhanƧa de ritmo e levada com a clĆ”ssica "Comfortably Numb" (Pink Floyd). As comparaƧƵes nĆ£o param por aĆ. Assim como a mĆŗsica do Floyd tem o melhor solo de The Wall, “In Any Tongue” entrega mais um dos melhores solos de David Gilmour, rascante e emocional. A letra parece bastante pessoal tambĆ©m. Em certo trecho, ele diz: “Nenhum açúcar serĆ” o bastante para trazer doƧura Ć sua lĆngua/ Mas a tristeza tem o mesmo gosto em qualquer lĆngua”.
“Beauty” Ć© a tĆpica faixa instrumental de Gilmour: a princĆpio, teclado e piano alternando notas com sua guitarra bluseira em um ambiente espacial e contemplativo, no estilo de “Red Sky At Night”. Aos poucos a faixa ganha corpo e a guitarra assume seu lugar de destaque. O problema Ć© que ao se aproximar do final, temos outro fade out, justamente quando a mĆŗsica ganhava forƧa, e fica parecendo que foi interrompida prematuramente. Poderia ter uma conclusĆ£o mais satisfatória. “The Girl in the Yellow Dress” Ć© um jazz de salĆ£o lento, com o baixo marcando a cabeƧa do tempo de cada acorde e um sax acompanhando o bailado. Ć uma mĆŗsica sobre um cara hipnotizado por uma garota que “danƧa feito uma chama”. Uma faixa que mostra a diversidade do compositor, mas nada demais, bastante quadrada sua interpretação vocal e a mĆŗsica ao redor.
“Today” Ć© outra das boas faixas de Rattle That Lock. Após um coral acompanhado por órgĆ£o, entra uma faixa bem anos 80 e boa interpretação de todos os envolvidos: guitarra base, backing vocals e baixo. Embora mais uma vez seja uma mĆŗsica que termina em fade out, o solo cai como uma luva e nĆ£o chega parecer abortado. “And Then…” Ć© mais uma instrumental . Guitarra com leve delay e fraseados bem bonitos, orquestra acompanhando ao fundo. Um final bonitinho, com uma gravação que lembra lenha queimando.
NĆ£o Ć© uma grande experiĆŖncia e nem tĆ£o focado quanto On An Island ou mesmo The Endless River e The Division Bell. Os solos de Gilmour caem melhor nas faixas mais contemplativas (como “The Blue”) ou no rock do disco solo anterior (como “Take a Breath”), mas ele desenvolve um bom trabalho aqui tambĆ©m. Rattle That Lock cumpre o papel de diversificar o catĆ”logo de Gilmour, mas, apesar dos bons momentos que proporciona, nĆ£o Ć© seu melhor projeto. Contudo, vĆ”rias faixas parecem ter potencial para parecer melhores ao vivo, com espaƧo para improvisação de guitarra e sax.
A voz de Gilmour continua boa. Ele nunca foi um cantor excepcional e nĆ£o Ć© agora, aos 69 anos, que suas cordas vocais iriam roubar a cena das seis cordas de suas mĆ£os. Percebe-se que talvez ele tenha alguma dificuldade em atingir certas notas, mas isso Ć© comum com a idade (ou vocĆŖ acha que Ozzy Osbourne ainda canta “Sabbath Bloody Sabbath” como na gravação original?).
Todas as mĆŗsicas sĆ£o de autoria do próprio Gilmour, que tambĆ©m coproduziu o Ć”lbum ao lado de Phil Manzanera usando trĆŖs estĆŗdios: o AIR de Londres, o Medina de Hove e, claro, o Astoria, seu barco. JĆ” as letras tiveram uma mĆ£o de sua esposa, a jornalista e escritora Polly Samson, que chegou a escrever sozinha cinco delas. Ela atĆ© se baseou no livro II de ParaĆso Perdido, do poeta inglĆŖs John Milton, para escrever “Rattle That Lock”, que tambĆ©m serviu de base para o clipe da mĆŗsica.
Rattle That Lock também é um disco que qualquer um poderia ouvir e gostar. Serve tanto como uma introdução a Gilmour quanto para quem não aprecia ou não conhece rock progressivo e Pink Floyd. Ou seja: para entender e gostar deste disco não é preciso ser fã da banda e conhecedor da carreira do compositor. à bem menos exigente com o ouvinte e mais solto. à um disco mais preocupado em servir de entretenimento do que ser uma criação inovadora. Seja no Floyd ou sozinho, Gilmour jÔ contribuiu demais com o desenvolvimento da música. O último do Pink Floyd é justamente uma grande experimentação sonora de primeira e sempre poderemos recorrer a ele (e a tantos outros) para ouvir Gilmour & cia. sendo criativos. Por hora, Rattle That Lock é para curtir e relaxar, não revolucionar.