Apesar de estar ciente de todas as sérias alegações e controvérsias que envolveram Marilyn Manson nos últimos anos, você ouve o novo disco do artista e se pega cantando "As Sick As The Secrets Within". Não vamos discutir as questões legais aqui, mas a tal da separação entre vida privada e trabalho é uma fronteira imaginária. One Assassination Under God - Chapter 1 é reflexo disso e não existiria sem a crise pessoal do cantor.
O novo álbum tem esse "capítulo 1" no título por se tratar da primeira metade de uma obra que se baseia na vida do artista - seja como o personagem Marilyn Manson e como a pessoa de Brian Warner. Mais de 20 anos atrás, Manson aproveitou a tribulação de todo o caso Columbine (em que foi levianamente considerado um dos responsáveis indiretos pelo massacre na escola) para escrever e produzir Holy Wood (2000), um dos grandes momentos de sua discografia. Era palpável como o zeitgeist dava mais força ao som e às letras do álbum. One Assassination Under God chega em um contexto parecido, mas mais pessoal.
Talvez seja por isso que as letras do álbum têm mais significado. Não é uma revolta fictícia ou abstrata. Não é um personagem cantando. Se vamos (ou devemos) comprar a visão de Manson, é outra história e depende do senso crítico do ouvinte. Porém, o interessante das letras de OAUG é que o compositor não se coloca como inocente ou interessado em fazer publicidade de si mesmo como pessoa cândida. É controverso. É capaz de errar. É capaz de se arrepender. Também é capaz de não se arrepender. E claro que ele alcança uma universalidade. Está falando de Manson/Warner, mas pode ser sobre você também.
Um dos méritos de One Assassination Under God é conter truques que soam novos para a banda. Com mais de 30 anos de estrada, ele continua sendo devotado ao rock e metal industrial, com contornos góticos e glam. Mas o excelente The Pale Emperor (2015) trouxe blues para a discografia. Desta vez, o que mais surpreende são a quantidade de versos que exaltam a voz limpa do cantor. Sem drive, sem efeitos, sem aquela rouquidão lânguida que estamos acostumados a ouvir. Esse recurso faz com que Manson soe mais jovem e posiciona a voz mais rasgada para momentos de maior intensidade.
Tyler Bates foi novamente o músico e produtor que deu forma ao trabalho. Bates já havia produzido The Pale Emperor e Heaven Upside Down (2017) e sabe como conduzir as coisas para Manson. Em estúdio, ele tocou guitarras, baixo, teclado e GuitarViol (as baterias ficaram com Gil Sharone, ex-The Dillinger Escape Plan). OAUG é bem polido, trafega muito bem entre o rock e o industrial e definitivamente sabe a hora de elevar o volume e de deixar as coisas mais pé no chão. É possível que esse seja o disco mais organizado de Manson. Embora o instrumental seja muito bom, em todas as faixas é a presença do cantor que fica sempre chamando a nossa atenção - sem excessos e sem performances que poderiam beirar o ridículo. Como compositor de canções para bandas e também para trilhas de TV, cinema e vídeo-games, Bates entende de dinâmica e o que deve brilhar em cada momento.
Vale a pena citar que Manson e sua banda estão fazendo shows desde agosto. Faz mais de uma década que a performance do líder do grupo é, no mínimo, errática. Passou anos cantando mal e não exibia interesse de entregar um show que fosse além do medíocre aos fãs. Mas 2024 está diferente. Talvez todas as turbulências dos últimos anos tenham mexido com ele, talvez seja só uma autoconsciência de que precisa ser melhor para si mesmo... vai saber. O que importa é que agora ele está em melhor forma, canta muito bem, entrega um show completo e mostra vontade de se conectar com a plateia por meio de suas músicas.
Os últimos três discos de estúdio de Marilyn Manson são ótimos, então não cabe dizer que só agora ele "voltou". Mas One Assassination Under God - Chapter 1 é o primeiro que traz música de qualidade na gravação com um artista que parece ter reencontrado o propósito nos palcos e nas ruas. Nos anos 90/2000, ele reagia ao que ocorria na sociedade, traduzindo tudo com som, letras e vídeos contestadores. Dessa vez, ele está muito mais vulnerável. Seu canal no YouTube e postagens no Instagram estão com os comentários desativados. São as ações dele que estão sob escrutínio - e muita gente não vai ouvir e nem falar de Manson justamente por toda a névoa tóxica que se formou ao redor de sua imagem pública.
Como ouvinte, ou como fã, você pode separar o Brian do Marilyn e encontrar seu espaço seguro para curtir um bom disco. Ou talvez seja justamente porque Warner e Manson são um só, no fim das contas, que o efeito de ouvir esse primeiro capítulo fica ainda mais poderoso nesse contexto atual. Mais do que uma coleção de músicas de rock, OAUG chega com um significado na história de Marilyn Manson que nenhum dos últimos 6 discos tiveram.