O novo disco do U2 e sua volta aos anos oitenta


Por Lucas Scaliza

Dia 9 de setembro de 2014: boa parte do mundo – principalmente os aficionados por tecnologia e novidades do setor – estavam de olho no evento da Apple que apresentou o iPhone 6, iPhone 6 Plus e o aguardado iWatch. Já estava circulando na imprensa que a empresa apresentaria esses produtos, mas ninguém tinha certeza se seriam lançados todos ao mesmo tempo. O que ninguém especulava é que Bono Vox, Larry Mullen Jr., The Edge e Adam Clayton apareceriam no palco da Apple, tocariam uma música nova e anunciariam que todo o disco novo já estava disponível para download gratuito no iTunes (serviço de música da Apple).

Foi uma jogada de marketing e tanto. Só o iTunes tem 500 milhões de clientes no mundo e o evento em que Songs of Innocence, o novo trabalho dos quatro irlandeses, foi lançado estava sendo acompanhado em tempo real em sete continentes. Um lançamento para ficar na história da música como o maior de todos os tempos. Em 2007, o Radiohead não só lançava o incrível In Rainbows como o fazia de uma forma inusitada: faça download do álbum pagando o quanto quiser, inclusive nada. Em 2011, o Radiohead novamente surpreendeu, comunicando que lançaria o novo disco, The King of Limbs, dentro de sete dias. Sem mais nem menos, quem não esperava nada da banda passou a ansiar por um dos discos do ano.

A surpresa não é apenas a forma como o disco novo do U2 foi lançado. O conteúdo dele é uma volta aos anos 80, época em que o U2 era mais orgânico. Em Songs of Innocence a banda soa jovem de novo, está pulsante e menos burocrática, menos preocupada em reinventar a roda. As mãos e o feeling de Danger Mouse, um dos produtores do disco (que também fez um ótimo trabalho em Turn Blue do The Black Keys), estão por todas as 11 faixas. Nenhuma é ruim, nenhuma está no disco apenas para completar uma escalação.

O U2 é uma banda que se tornou tão grande e tão conhecida, tão engajada social e politicamente que nada neles poderia ser comum. Os shows se tornaram megaeventos em estádios, os palcos eram obras de engenharia e arquitetura, o som e a produção dos discos tinha que ser impecável. Tanta pomposidade e compromisso ético levou-os a produzir How to Dismantle an Atomic Bomb (2004) e No Line On The Horizon (2009), primeiro. O primeiro, embora tenha alguns bons hits, se perdia em romantiquices bonescas. O segundo, que tentava soar rock’n’roll, era pomposo demais, frio demais. Ambos eram muito focados na atuação individual de Bono e em raríssimos momentos podíamos destacar a atuação de algum outro membro.

A melhor parte de Songs of Innocence é perceber que ele não sofre desse mal. Como um back to basics, o U2 soa no novo trabalho bastante orgânico: são quatro pessoas na banda e é possível ver que todas têm seus momentos. Bono cria linhas vocais melodiosas e acessíveis sem precisar se render ao ultrapop. Ele sofre menos ao cantar e se diverte mais. The Edge se livrou da ditadura do pedal de delay e se permite tocar de forma mais direta, mais punk e até faz um solo de guitarra tradicional em “Volcano”, “California” e “Sleep like a baby tonight”.

Mesmo “The troubles”, talvez a faixa menos visceral do disco, é um show de baixo de Adam Clayton e de condução de bateria de Larry Mullen Jr. E ambos aparecem brilhantes em diversas outras faixas. Mais do que a produção esmerada, a atuação individual de cada músico pode ser ouvida com clareza.

The Miracle (of Joey Ramone)” é a faixa que abre o álbum e mostra uma pegada pop oitentista e uma letra que lembra a juventude de Bono, quando ouviu Ramones e tudo mudou para ele a partir dessa descoberta punk. “Every breaking wave” é o U2 sendo uma banda jovem de verdade. Quando o refrão explode, pode fechar os olhos e quase ouvir o Chris Martin cantando. Até mesmo a linha de guitarra lembra o Coldplay. Vamos lembrar que o Coldplay tem como uma de suas principais influências o U2. Então o que ocorre aqui é uma troca de referenciais. “Every breaking wave” tem potencial para estourar nas rádios.

California (There is no end to love)” fala sobre a primeira vez que o quarteto irlandês desembarcou na Califórnia. Bem acessível e bem animada, colorida e animada, como deveria ser a animação da banda nos anos 80, quando ocorreu a viagem. O início da canção é uma homenagem à banda californiana Beach Boys. A sobreposição de vocais é uma referência direta à música “Barbara Ann”.

Song for someone” é uma das baladas mais bonitas que o U2 compôs desde All That You Can’t Leave Behind (2000). The Edge brilha com seu estilo de tocar, reconhecível assim que as notas de cada acorde começam a soar com o delay. “Iris (Hold me close)” é uma das melhores do disco. A Iris do título é Iris Hewson, mãe que Bono perdeu aos 14 anos. É a terceira vez que o vocalista toca no assunto com sua banda (as músicas “I will follow”, de 1980, e “Tomorrow”, 1981, também são sobre a mãe dele). Em “Iris” Bono canta como ela – e a perda – fazem parte do homem que ele se tornou. “Tenho sua luz dentro de mim”, ele canta.

Raised by wolves” é sobre um ataque terrorista que ocorreu perto da casa de Bono quando ele era criança. Eram tempos de IRA na Irlanda, movimentação política que deu tanto o tom visceral quanto o tom terno que o U2 sustentou com tanta habilidade há 30 anos. “Cedarwood Road” tem um trabalho muito bom de guitarra rítmica, baixo e bateria. O nome da canção é o nome da rua em que Bono morava quando criança. Na faixa ele relembra aqueles dias ao lado dos amigos que moravam na mesma rua. Lembrando que eram tempos politicamente agitados em Dublin. É um ótimo exemplo de como a banda soa mais compacta, mais orgânica e pulsante, como se fossem de novo quatro amigos na garagem cantando para o planeta sobre o mundo em que vivem.

A faixa mais interessante do disco é “Sleep like a baby tonight”. Mais triste, tem um sintetizador como base até o primeiro refrão. The Edge usa sua guitarra com uma distorção forte e grave, um timbre que ele nunca usou antes, para fazer um riff, e depois um efeito fuzz para o solo. Bono faz um falsete que há anos não ouvíamos. A mão de Danger Mouse se faz sentir aqui: a música soa como em Rome, disco que o produtor lançou em parceria com Daniele Luppi em 2011 (com participação de Norah Jones e Jack White). Quem também ajuda a produzir o disco é Flood, que trabalhou com o U2 pela primeira vez no clássico The Joshua Tree (1987), e a dupla Paul Epworth e Ryan Tedder, que trabalha com a Adelle.

Continuando a volta à juventude, “This is where you reach me now” lembra como foi ver um show do The Clash em 1977. Adam e Larry fazem uma bela cama que nos mantém no ritmo enquanto The Edge fica a vontade para criar detalhes e ritmos diversos. Há um sintetizador também que soa como uma presença fantasmagórica. Em “The troubles”, Bono divide os vocais com a sueca Lykke Li, que também lançou um disco novo em 2014. Dentre todas as letras nostálgicas do álbum, a de The Troubles é a que menos foca no passado para falar da vida de Bono com a idade que ele tem hoje.

Em fevereiro, Bono concedeu uma entrevista para a Rolling Stone EUA. Suas respostas deixam claro porque Songs of Innocence soa como o velho U2. “A gente ouvia aquelas músicas maravilhosas no final dos anos 70 e começamos a pensar naquela época e nas coisas que nos fizeram sermos quem nós éramos. Voltamos a pensar porque queríamos ter uma banda, pra começar. Isso abriu uma válvula para que eu escrevesse e foi uma explosão para todos os lados. Nós ouvíamos Ramones e Kraftwerk e não dá para ouvi-los no modo ‘invisível’.”

O Coldplay, com o lançamento de Ghost Stories este ano, deixou de ser, momentaneamente, uma banda de estádios para tocar em lugares menores, para menos pessoas. O álbum e a opção da banda resgatam uma economia de recursos e a intimidade da relação entre banda e o público. Uma banda gigante – como é o U2 e como se tornou o Coldplay – podem proporcionar um espetáculo memorável, mas dificilmente a conexão com o público torna-se próxima o suficiente. Sempre haverá luzes, seguranças, grades e impessoalidades demais separando um do outro.

Na mesma entrevista pra a RS, Bono diz que gostaria de fazer shows menores dessa vez. Seria uma opção que combinaria com o clima de Songs of Innocence e com o conteúdo. São muitas histórias pessoais e passionais de Bono, da banda, de Dublin e da Irlanda. A experiência sonora no álbum é eficiente e um dos melhores discos que o U2 já lançou desde a década de 1990. Ao vivo, poderá ser ainda mais significativo.

E fiquem atentos. Bono já avisou que vem por aí o Songs of Experience. Que essa dobradinha tem a ver com o poema de William Blake a gente notou logo de cara, mas terá algo a ver com o The Joshua Tree?

[Lucas Scaliza, jornalista, tem seus textos resgatados no blog Escuta Essa]

Bruno Eduardo

Jornalista e repórter fotográfico, é editor do site Rock On Board, repórter colaborador no site Midiorama e apresentador do programa "ARNews" e "O Papo é Pop" nas rádios Oceânica FM (105.9) e Planet Rock. Também foi Editor-chefe do Portal Rock Press e colunista do blog "Discoteca", da editora Abril. Desde 2005 participa das coberturas de grandes festivais como Rock in Rio, Lollapalooza Brasil, Claro Q é Rock, Monsters Of Rock, Summer Break Festival, Tim Festival, Knotfest, Summer Breeze, Mita Festival entre outros. Na lista de entrevistados, nomes como Black Sabbath, Aerosmith, Queen, Faith No More, The Offspring, Linkin Park, Steve Vai, Legião Urbana e Titãs.

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